De vez em quando, nós do Achados e Lidos deixamos a literatura um pouco de lado para embarcar no jornalismo. O Dono do Morro – Um Homem e a Batalha pelo Rio (Companhia das Letras, 353 páginas), do jornalista inglês Misha Glenny, é do tipo que vale a viagem.

O livro reúne as qualidades essenciais para uma boa reportagem. É bem escrito, bem apurado e, o que considero seu grande trunfo, se baseia em um dos personagens mais interessantes a emergir dos morros do Rio de Janeiro nas últimas décadas: o Nem da Rocinha.

Sua história é digna de cinema. Antônio Francisco Bonfim Lopes nasceu em uma família pobre. A mãe era empregada doméstica e passava a maior parte da semana dormindo no emprego, em um dos bairros abastados da orla do Rio de Janeiro. O pai pulava de trabalho em trabalho, mas acabou se fixando em um bar de Copacabana. Os dois bebiam e o lar tinha episódios violentos.

Ainda assim, Nem cresceu distante do tráfico e de outros crimes que costumam atrair jovens nascidos nas favelas, na falta de outras opções. Trabalhou desde menino e aos 20 e poucos anos era chefe da equipe encarregada da distribuição da extinta Revista da Net na Zona Sul do Rio, o que lhe rendia o suficiente para deixar o barraco de sua mãe e morar com a esposa e a filha pequena.

O problema é que Eduarda, a bebê, adoeceu. Primeiro suspeitaram de um tumor, mas o que se descobriu era que a menina tinha uma doença grave e rara, e que o tratamento demandaria recursos dos quais a família não dispunha. Diante dessa necessidade, Nem resolveu subir o morro e pedir ajuda para o chefe do tráfico na Rocinha, Lulu.

Nem é descrito como uma pessoa inteligente, capaz de decidir rapidamente em ambientes de extrema pressão, o que facilitou sua rápida escalada na hierarquia do tráfico carioca, até se estabelecer de fato como Dono do Morro.

Glenny, é evidente no livro, ficou fascinado pelo personagem que tinha em mãos. É bem provável que em algum grau tenha se afeiçoado a Nem, como aconteceu com Truman Capote em A Sangue Frio, quando o autor ficou fascinado pelo assassino que estava retratando. Esse sentimento pode ter sido exacerbado porque Glenny perdeu sua filha enquanto escrevia o livro, o que talvez facilite entender a decisão que mudaria a vida de Nem.

Essa parcialidade observada em alguns momentos do livro não é, contudo, um empecilho para o quadro que o jornalista faz do Rio de Janeiro, dos anos 80 até agora. Por meio de dezenas de entrevistas, Glenny reconstrói o caminho trilhado pelas facções que hoje dominam os morros cariocas: quando o tráfico se intensificou e o Rio deixou de ser apenas ponto de passagem da droga para atender a um mercado crescente, o que se encontrava nas favelas da cidade era um caldeirão perfeito: pobreza, desigualdade, corrupção e ausência da presença do Estado. Foi assim que surgiu um poder paralelo, logo estruturado em facções poderosas, como o Comando Vermelho, que se espalhariam pelo Brasil. Nem é o emblema dessa tragédia, mas sua queda infelizmente não representa o ocaso do tráfico e muito menos o fim da completa incompetência do Estado para lidar com a questão.

Glenny não discute soluções, mas é inevitável que a sociedade o faça em algum momento, e o caminho possível parece ser o da descriminalização. Como disse o próprio Nem em entrevista ao El País, é preciso legalizar as drogas se quisermos o fim do tráfico. A repressão ao consumo não funcionou, mostram experiências internacionais. A política de pacificação das favelas exacerbou o poder das milícias, e episódios como o chocante assassinato da deputada Marielle Franco demonstram que claramente o Estado perdeu o controle nessa guerra, se é que já o teve um dia. Medidas como a intervenção militar são inócuas, e impressionantes 30% da população do Rio de Janeiro afirmaram já ter presenciado um tiroteio, um número estarrecedor. Mudar o quadro, contudo, depende primordialmente de um Estado capaz de promover justiça, e não um que escolha qual lado paga mais.

PS: A leitura de O Dono do Morro faz parte dos títulos selecionados para abril do Clube do Livro do qual faço parte. O outro livro escolhido foi O Sol na Cabeça, da nova estrela literária brasileira, Geovani Martins. Aguardem resenha aqui em breve e um relato das discussões!

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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