Chegamos ao fim da primeira parte de O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, com sua hilária história sobre o passeio de uma trupe diabólica pela Moscou dos anos 30. Como não poderia deixar de ser, mais alguns fatos insólitos tomaram lugar na capital, como um terno sem corpo e a transfiguração monetária. À medida que avançamos e conseguimos conectar os fios que ligam essa trama, mais aguçada fica nossa curiosidade!  A de vocês também? Continuem acompanhando conosco. Na próxima semana, vamos até o 22º capítulo, ou até a página 252 se você tem a edição da foto.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Desaparecimentos consecutivos levaram a uma situação para lá de insólita no Teatro de Variedades. Depois de um espetáculo memorável, no qual se distribuiu dinheiro (transformado em seguida em papéis sem valor) e roupas parisienses (que num passe de mágica, ou de magia negra, sumiram logo após a apresentação, deixando em trajes mínimos algumas das senhoras mais ávidas no teatro), o estabelecimento amanheceu mergulhado no caos. Logo pela manhã, a fila que se formava à porta já era tão grande que levou até mesmo a polícia a aparecer. Os telefones tocavam sem parar, mas um problema esdrúxulo se impunha aos funcionários:

O próprio Likhodêiev também não estava. A empregada Grúnia também não estava, e ninguém sabia onde se metera. O presidente da administração, Nikanor Ivánovitch, não estava, Prólejniev não estava.

Resultou algo absolutamente inacreditável: toda a cúpula da direção desaparecera, uma sessão terrivelmente escandalosa tivera lugar na véspera, mas não se sabia quem a realizara ou investigava.

Vassíli Stepánovitch, o guarda-livros, foi o homem imbuído da difícil missão de colocar ordem na balbúrdia e, principalmente, descobrir quem era Woland, o protagonista de tão célebre apresentação. Ao se dirigir à comissão de espetáculos, o que encontrou não foi menos assustador: atrás da escrivaninha, estava sentado um terno vazio, que usava gravata e caneta tinteiro, mas sem que fosse possível enxergar um corpo ocupando esse espaço.

Encarregado do caixa da sessão, Stepánovitch acaba também mais envolvido do que desejava nessa trama surreal: ao entregar o dinheiro, descobre que tem nas mãos apenas moeda estrangeira, e nem um rublo sequer.

Outro personagem que não escapará de um acerto de contar com o Diabo será um parente distante de Berlioz, morto decapitado por um trem. Isso porque não adianta nem tentar: não há intenção furtiva que passe despercebida pelos personagens diabólicos de O Mestre e Margarida. Esse personagem, que ao saber da morte do primo da esposa não se aflige pelo luto, mas corre para Moscou para tentar recuperar seu apartamento na Sadôvaia, verá cenas que o deixarão tão perplexo que o melhor a fazer é correr para tomar o trem de volta à  Kiev. As vaidades humanas são expostas de forma crua, e cômica, pelos personagens que rondam Woland.

O copeiro Sókov, que cuida do bar do Teatro Variedades, também não escapa à espécie de Juízo Final, banhado de ironia, que o séquito diabólico proporciona a todos que cruzam seu caminho. Quando tenta recuperar o dinheiro perdido na noite anterior, já que todos os clientes pagaram com as tais notas falsas distribuídas no espetáculo, Sókov tem que encarar, além das criaturas bizarras, um interrogatório a respeito de como ele leva a vida e, principalmente, sobre sua relação com o dinheiro. Não precisamos nem mencionar o quão traumática é essa experiência e que o seu destino, como o de todos as outras infelizes vítimas de Woland, é desesperar-se e fugir.

Cada vez mais, fica evidente que as cenas cheias de ação e os personagens surreais construídos por Bulgákov estão, na verdade, a serviço de um propósito mais abstrato. Nessa obra, o escritor busca imergir na alma humana e expor suas fraquezas a partir de um humor fino e de uma mise en scène inusitada. Isso fica claro, sobretudo, nesta fala do diabo, quando tenta explicar ao copeiro assustado os objetivos do show da noite anterior:

– Ah, pois bem, pois bem! Meu caro! Vou lhe revelar um segredo: não sou artista nenhum, simplesmente tive vontade de observar os moscovitas em massa, e isso era mais cômodo fazer em um teatro. Bem, foi meu séquito – acenou na direção do gato – que fez essa sessão, eu só fiquei sentado olhando para os moscovitas.

Dramaturgo que é, Bulgákov não perde a oportunidade de trazer a metáfora do teatro para a sua obra. O diabo, tal qual um diretor, observa de longe tanto as encenações de sua trupe, que estão sob seu controle, quanto as reações da plateia, que, embora previsíveis, fogem de sua alçada.

Nesse aspecto, Bulgákov não se distancia tanto assim dos seus compatriotas célebres da literatura. Encontramos em O Mestre e Margarida o mesmo olhar afiado de Dostoiévski ou de Tolstói sobre o comportamento humano e sobre a vida em sociedade. A diferença, ou melhor, originalidade da obra, está em confiar essa tarefa de investigação a uma trupe de personagens tão insólita.

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