[Resenha] A Vida Mentirosa dos Adultos, por Elena Ferrante

Em A Vida Mentirosa dos Adultos (Intrínseca, 431 páginas), o tão aguardado novo romance de Elena Ferrante, a autora volta à Nápoles, na Itália, dessa vez para acompanhar a passagem da infância para a adolescência de Giovanna, uma garota de classe média que questiona seu passado, sua beleza, suas amizades e sua família depois de entreouvir uma inesperada declaração de seu pai. 

E, ainda que A Vida Mentirosa dos Adultos não tenha a mesma qualidade da Tetralogia Napolitana (cujas resenhas você encontra aqui), há nele uma espécie de força magnética que mantém o leitor preso às suas páginas até o fim. O poder de Elena Ferrante de causar frisson continua intacto. 

De certa forma, isso ocorre porque Ferrante mostra como é frágil o equilíbrio que mantém as peças da nossa vida encaixadas. Neste quebra-cabeça, qualquer breve movimento, tão sutil quanto uma frase impensada em meio a uma briga de casal, pode desarranjar tudo de forma irreversível. E assim é com Giovanna.

“Foi assim que, aos doze anos, soube pela voz do meu pai, sufocada pelo esforço de mantê-la baixa, que eu estava ficando igual à sua irmã, uma mulher na qual – eu o ouvira dizer desde sempre – feiura e maldade coincidiam perfeitamente”. 

A partir deste momento, a vida de Giovanna, e de todos a seu redor, passará a ter contornos antes inimagináveis. Confrontada com a afirmação de que está cada vez mais parecida com a tia, Giovanna decide procurar Vittoria, até então uma parente com quem seus pais mantinham uma relação afastada e pouco amigável. 

Com essa decisão, a menina descobre uma outra Nápoles, no qual o dialeto é o idioma corrente, as ruas são sujas, os prédios estão caindo aos pedaços. A dicotomia entre seu conhecimento anterior da cidade e seus horizontes agora expandidos também se reflete em outros aspectos da sua existência.

À medida que envelhece, Giovanna precisa encarar que sentimentos confusos e incongruentes cabem em um mesmo ser humano. O feio e o belo, o bom e o mau, a verdade e a mentira, o desejo e o recato, a inteligência e a burrice, tudo convive em cada um de nós, e essa descoberta que fazemos na adolescência, inclusive sobre os nossos pais, é a um mesmo tempo chocante e reconfortante.

Usando como símbolo uma pulseira de ouro, que passa por vários braços ao longo da narrativa, Ferrante tenta evidenciar como são frágeis as mentiras sobre as quais erigimos nossas vidas cotidianas. Vidas que antes pareciam tão límpidas quanto o italiano culto se mostram poluídas por enganações, traições e outras sujeiras que guardamos nos cantos mais recônditos.

Se esta não é a melhor forma de Ferrante, seja pela repetição de paisagens, temas e fixações dos seus romances anteriores, certamente continuará a conquistar os leitores que se apaixonaram pela escritora, que continua a guardar sua aura de mistério. Avessa a entrevistas e redes sociais, ela usa um pseudônimo para se manter longe dos holofotes, o que inclusive já levou uma série de críticos a apontar Domenico Starnone como sua verdadeira identidade. Em uma crença reforçada por este novo livro, continuo a acreditar que sua obra foi escrita por uma mulher – não importa quem ela seja. 

Esta resenha foi recomendada na campanha da editora educativa Twinkl sobre a importância das mulheres na literatura.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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2 Comentários

  1. Eu achei o livro inconclusivo, com todas as trajetórias da protagonista em aberto. Apesar disso, AVMdA é uma exclente narrativa, com uma personagem central bem construída e desenvolvida. Chama a atenção também a descrição que Elena Ferrante dá aos detalhes. Na parte que ela se concentra em descrever Nápoles, eu li com o Google Maps de lado para me situar nas ruas e praças citadas

    • Tainara Machado

      17 de novembro de 2020 at 13:20

      Olá, João, tudo bem? Obrigada por seu comentário. Uma outra leitora comentou com a gente que o livro parece que termina engatilhado para uma sequência. Acho que foi a mesma impressão que você teve! Concordo com a sua visão de que é uma excelente narrativa, dessas que torna difícil largar o livro, mas por vezes achei a personagem central um pouco superficial e muito parecida com outras personagens anteriores da autora. Isso me incomodou um pouco no livro.
      PS: Adorei a ideia de ler com o Google Maps ao lado! Vou adotar!
      Obrigada mais uma vez por seu comentário e volte sempre! 🙂

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