Como é possível alguém traduzir nas palavras mais belas certas verdades essenciais que parecem inexplicáveis? Essa é a sensação que fica quando lemos um livro de Valter Hugo Mãe.

Nesta semana, cerca de dois anos depois de conhecê-lo no lançamento de seu romance A Desumanização, eu tive a oportunidade de presenciar mais uma vez a sabedoria desse escritor português nascido em Angola. E acreditem: ouvi-lo é tão bom quanto lê-lo.

Hugo Mãe esteve em São Paulo na última quarta-feira, dia 31, para participar do ciclo de palestras do Fronteiras do Pensamento. Sua relação com a literatura foi o principal tema da conversa, que começou com a leitura do texto Deus era um livro, escrito especialmente para o evento.

Em primeira pessoa, a prosa revela a infância de um menino cujas lembranças literárias mais remotas coincidem com a existência de uma Bíblia em casa. Aquele objeto, tão vivo quanto inanimado, despertava a curiosidade e a imaginação da criança.

Minha avó explicava, “a Bíblia é a esperança… a Escritura sofria”. Lembro-me bem de pensar acerca disso. Durante a profunda atrocidade do mundo, a Bíblia, tão cheia de esperança e tão antiga, sofria. Era um livro magoado. Ela sabia que os erros são cíclicos e que a humanidade aprende pouco. Faz sempre pior do que pode. (…)

Eu imaginava a Bíblia, não a lia. Imaginava. Creio que a frequentava pela sua emanação e não pelo que efetivamente pudesse conter. Fechada na sua história infinita e sagradíssima, eu inventava sua mensagem com todas as forças do meu pensamento, com toda a criatividade de minha ilusão. Enternecia-me com luzes e flores, todas as grandes e pequenas dores, solidões ou fragilidades. Acreditava que ser sagrado vinha de estar atento e proteger.

Com esse texto, equilibrando-se sobre a linha tênue entre memórias e fantasias, realidade e ficção, Hugo Mãe já cativou a plateia. Em seguida, iniciou, com a mediação do jornalista Paulo Werneck, uma reflexão sobre o papel da literatura em sua existência.

Eu tenho impressão de que dentre as pessoas mais importantes da minha vida estão alguns livros. Talvez até muitos livros. (…) E a maneira com que eu tenho de intensificar o coletivo, de me sentir minimamente razoável no coletivo, é através dos livros. E eu acho que muito devagarinho a criança que achava que veio ao mundo só para ver, começou a acreditar que pudesse dizer alguma coisa, porque foram os livros que intermediaram a criança com os outros.

Quem gosta de literatura é capaz de sentir cada uma dessas declarações de Hugo Mãe. A identificação com o escritor português é inevitável. Ele escreve e fala para quem tem paixão pelos livros, esteja ela desperta ou adormecida.

Entre os autores que o marcaram, o escritor português citou o brasileiro Paulo Leminski, a poeta norte-americana Sharon Olds e Franz Kafka. Da obra de Fernando Pessoa, a que mais lhe impacta é o Livro do Desassossego, do heterônimo Bernardo Soares. “Atravessamos o livro mil vezes e saímos rejeitados todas as vezes”, diz ele.

Hugo Mãe falou também sobre a humanidade, a injustiça e a violência. Ele reforçou, com palavras ainda mais certeiras, uma ideia que eu havia escutado já da primeira vez que o vi. Há um abismo gigantesco entre o que conhecemos e o que praticamos e desse descompasso se alimenta a obscuridade do mundo.

É comum fazermos menos do que sabemos. Sabemos sempre, na nossa consciência, chegar a um gesto mais educado. Depois não agimos verdadeiramente em consonância com o que sabemos. E nesse esquizofrênico desfasamento entre o que sabemos e o que fazemos reside eventualmente o cataclismo de vivermos ainda numa sociedade profundamente injusta e desigual.

Falando sobre momentos obscuros, Hugo Mãe opinou ainda acerca da ditadura de Salazar em Portugal. A violência física desse período, embora tenha existido, não foi preponderante se comparada a de outros regimes totalitários e sanguinolentos ao redor do mundo. No entanto, a agressão causada foi igualmente grave: incutiu-se no povo português o sentimento de inferioridade e incapacidade.

É frequente encontrarmos quem diga “não temos direito”, “não estamos à altura de nos compararmos com povos estrangeiros”. Isso é uma porcaria. É o que no Brasil chamam de complexo de vira-lata. Durante a ditadura de Salazar, o português foi amansado até acreditar que era o vira-lata europeu.

Os livros de Hugo Mãe versam, em sua maioria, sobre tragédias. Sua prosa poética torna suportável uma realidade aviltante. Se seus livros guardassem uma escrita fria e objetiva dificilmente aguentaríamos ultrapassá-los. Durante a conversa, ele justificou essa inclinação pela decadência de uma maneira muito direta:

Ninguém é feliz fácil. E quase ninguém é feliz. Eu até acredito que é possível ser feliz, mas dá muito trabalho e não tem muita gente feliz no mundo. A felicidade é muito penosa.

Hugo Mãe encerrou a palestra falando sobre seus hábitos de escrita. Toda profundidade que lemos em sua obra não vem sem esforço. O escritor é bastante ativo nas redes sociais (se você ainda não o segue, recomendo fortemente!) e são comuns os posts em que ele diz estar se desligando do mundo para terminar algum romance.

Quando estou escrevendo, não consigo deixar de estar dentro de um livro. A pior coisa que podem pedir é que eu pare. Escrevo no celular enquanto caminho. Há pessoas que julgam que estou a caçar Pokemons, porque fico digitando avidamente. Mas as ideias estão mais em toda parte que os Pokemons.

Quando era mais novo, Hugo Mãe previu várias datas-limite à sua existência. Achou que morreria antes dos 18, depois aos 33 e em seguida aos 40. Para nossa sorte, ele já venceu todas essas marcas e publicou diversos romances. Mais um acaba de ser lançado em Portugal e deve chegar em novembro ao Brasil. Por aqui, suas obras estão sendo reeditadas pelo selo Biblioteca Azul da Globo Livros, desde o fechamento da Cosac Naify.

Hugo Mãe venceu o Prêmio José Saramago em 2007 com seu segundo romance, o remorso de baltazar serapião. Na ocasião, o livro foi definido pelo próprio Saramago como um “tsunami no sentido total: linguístico, semântico e sintático”.

Quem já leu Hugo Mãe não poderia concordar mais. Eu sou uma fã declarada e sempre recomendo a todos que leiam o que ele escreve, escutem o que ele diz ou ao menos o sigam nas redes sociais. Não há banalidade em nada do que Valter Hugo Mãe produz. Até o assunto mais simples ganha urgência e beleza em sua prosa poética. Ele é um verdadeiro acontecimento literário.

ps.: A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe, está na disputa para ser o título do nosso próximo Clube do Livro! Se você ainda não votou, é só procurar o post da última sexta-feira nas redes sociais ou clicar aqui e deixar seu preferido nos comentários. Os concorrentes são fortíssimos, mas acho que depois deste post não tenho mais como esconder meu voto, não é?

Mariane Domingos

Mariane Domingos

Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
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