Incitado por um editor indiano a escrever “sobre as grandes transformações ocorridas na China ao longo das últimas três décadas”, o autor chinês Mo Yan descartou o tema, em um primeiro momento, por ser abrangente demais. A insistência do editor, que chegou em um momento a lhe dizer que ele poderia então escrever o que quisesse, fez com que Mo não conseguisse mais abandonar a ideia.

De fato, a transição da China de um país essencialmente rural para uma economia de mercado, com as profundas transformações sociais que marcaram o país nas últimas décadas, é assunto que domina prateleiras e mais prateleiras das livrarias.

Mesmo assim, em apenas 125 páginas, Mo Yan deu conta do recado. Mudança é pequeno livro sobre grandes temas, abordados sutilmente. Por meio de episódios aparentemente banais de sua infância e adolescência, Mo fala da vida no campo, da transição das aldeias para as cidades, da influência cotidiana do Partido Comunista na vida social e de um país em ebulição.

O primeiro capítulo narra a expulsão de Mo da escola. Embora fosse um menino curioso, “uma coruja de bom agouro”, como dizia sua mãe, o menino era sempre o primeiro a ser apontado como culpado pelas coisas que davam errado na escola.

Muita gente achava que eu tinha um parafuso a menos, que era um cabeça-dura, que odiava a escola e os professores. Total equívoco. Na verdade, eu nutria um sentimento profundo por minha escola, em especial pelo professor Boca Grande. Porque eu também era um menino de boca grande.

Foi na escola que Mo conheceu He Zhiwu, o menino mais forte da classe, que sonhava em dirigir o caminhão do pai de uma das meninas, um Gaz 51 importado da União Soviética. Em um período em que a China ainda não produzia quase nenhum bem industrial e as paisagens do pequeno vilarejo que os meninos habitavam eram dominadas por galinhas, o veículo exercícia um fascínio quase mítico sobre os meninos.

Meninos são fascinados por velocidade. Se ouvíssemos o ronco do motor durante a refeição em casa, largávamos o prato e corríamos até a esquina para assistir à passagem daquele Gaz 51 verde dirigido pelo pai de Lu Wenli, que vinha como um bólido de um lado ou de outro da aldeia.

O Gaz 51 é personagem importante dessa história. Mais tarde, já servindo ao exército, Mo encontraria de novo aquele caminhão em sua unidade, no condado de Huang. O veículo era conduzido pelo Técnico Zhang, um oficial baixinho de “cabelo grisalho e dentadura postiça”.

Ao lembrar que eu quase tinha morrido para experimentar a velocidade de um Gaz 51, concluí que tinha valido à pena entrar para o Exército. Ao volante, o Técnico Zhang perdia o juízo e virava praticamente um fora da lei. Não havia muitos carros naquele tempo. Não existia um centímetro de autoestrada no país inteiro. A melhor estrada, diziam, era aquela à beira-mar, construída durante a invasão japonesa, com uma largura que mal permitia a passagem de dois carros.

Realmente, uma China inimaginável hoje. Em vários outros momentos, o autor aponta mudanças semelhantes, como o domínio de arranha-céus em cidades onde antes não havia nem prédios, a proliferação das viagens de trens, antes um luxo, e a chegada das máquinas que eram capazes de reproduzir até uma especialidade da cozinha chinesa, uma espécie de bolinho chamado jiaozi.

No entanto, são as mudanças sociais – ou até a falta dela, em alguns casos – as transformações mais interessantes relatadas no livro. Com sua escrita fluída e leve, Mo Yan transforma em episódios engraçados as agruras enfrentadas durante sua tentativa de se desvencilhar da vida no campo e conseguir realizar suas aspirações literárias. Mesmo expulso da escola na quinta série, a boa formação fornecida por seu colégio lhe permitia tentar algo melhor. Com a ajuda de um tio, primeiro conseguiu um emprego numa fábrica de processamento de algodão.

Embora o trabalho como temporário na fábrica de processamento do algodão fosse muito melhor do que a lavoura, eu continuava registrado como camponês. Enquanto esse registro não fosse alterado, eu permaneceria na última camada da sociedade.

Mo sugere, por sua história e a de outro personagem, que havia dois modos de deixar essa última camada da sociedade na China. O primeiro era contar com algum tipo de apadrinhamento, primeiro do mártires da revolução e, depois, dos membros do Partido Comunista, que exerceriam uma influência cada vez mais significativa no dia a dia dos chineses.

Quando era jovem, as possibilidades de ascensão eram estritamente controladas, lembra Mo. As universidades, por exemplo, não tinham nem exame de admissão e as vagas eram preenchidas por recomendação de camponenes, o que tornava seu acesso praticamente impossível. Ele decide então tentar a admissão na carreira militar.

Entre as várias mudanças de unidade e o eventual acesso à universidade, anos mais tarde, Mo sempre dependeria da indicação de algum benfeitor. Já He Zhiwu, seu antigo colega de classe, mudaria seu status social por meio de malabarismos francamente criticáveis, quando não ilegais, nos negócios. He estava sempre pronto para aproveitar as oportunidades que surgiam do crescimento da economia chinesa. Sua primeira “tacada de mestre” aconteceu quando decidiu trazer animais de grande porte da Mongólia Interior para o continente, na época em que o país passou a permitir arrendamentos de terra, vendendo-os por um preço muito maior do que havia pago. Outros negócios, ainda menos limpos, permitiram à He uma vida de luxos e vícios, uma realidade quase inexistente na China de 1970.

Mo ganharia fama como escritor nos anos seguintes e alcançaria uma posição na qual as pessoas acreditavam que poderia exercer certa influência sobre indicações e cargos. O último capítulo nos mostra como os costumes não morrem com facilidade. Procurado por uma velha amiga para ajudar sua filha a conseguir colocação em uma vaga em uma orquestra, Mo diz à mãe que a menina já teria seu lugar garantido de qualquer forma. Seu talento era suficiente para que alcançasse a posição sozinha. Mesmo assim, ela lhe entrega dez mil iuanes para agradecer o favor prestado.

Ela soluçou: “Obrigada… Muito obrigada…”. “Não precisa me agradecer”, falei, “sua filha é que é bem qualificada, tem bom desempenho, tem boas notas!” Ela me interrompeu: “Sei como funcionam as coisas hoje em dia… obrigada, meu colega…”. Tirou da bolsa um envelope: “Aqui tem dez mil iuanes, espero que não seja pouco para oferecer um bom vinho ao secretário Lu e aos outros…”.
Pensei por um momento e disse: “Está bem, querida colega, vou aceitar”.

O que mudou não foram os hábitos, mas a escala do dinheiro.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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