Nesta semana, enquanto acontecia a votação para o título do nosso próximo Clube do Livro, passamos o tempo em ótima companhia! O conto A Carta Roubada de Edgar Allan Poe nos rendeu uma boa leitura. Para a próxima semana, vamos ler o clássico O Alienista, de Machado de Assis – outro contista de destaque. Leia conosco e comente no post de sexta que vem.

Ah, e o grande vencedor da votação para nosso próximo Clube do Livro foi Valter Hugo Mãe, com A Máquina de Fazer Espanhóis. Fique atento, porque dentro de alguns dias, vamos sortear um exemplar em nosso Instagram. Ainda não nos segue por lá? Estamos dando uma ótima razão para começar! 🙂

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Assassinatos e mistérios são centrais nos contos de Edgar Allan Poe. Há quase sempre alguma cena de terror, derramamento de sangue, cenários sombrios. A Carta Roubada, conto sugerido por nosso leitor Eliseu e que está no livro Histórias Extraordinárias, foge desse padrão por ser menos obscuro, mas, nem por isso, carece do suspense típico das obras de Poe.

A princípio, a trama é bastante simples. Dois amigos conversam e divagam na pequena biblioteca de um deles em Paris, em um período não muito definido no século XIX, quando são interrompidos pelo comissário da polícia parisiense, monsieur G. Seu caso, diz, é “simples e esquisito”, mas a polícia não consegue resolvê-lo.

G. descreve então o roubo de uma carta dos aposentos reais pelo ministro D. Todos sabem quem é o ladrão porque ele cometeu o delito na frente da personagem roubada, que lia a carta quando outro importante personagem, de quem ela desejava esconder o documento, entrou no aposento. O ministro D. adentrou logo a seguir e aproveitou o fato de que ela nada podia fazer, porque não queria chamar atenção da terceira pessoa, para lhe furtar a missiva. A carta, porém, colocava em risco a honra de um personagem da “mais alta posição”, por isso a atitude do ministro foi tão grave e ameaçadora.

O comissário busca, então, encontrar o documento e procede com buscas incansáveis pela casa do ministro, que costumava passar as noites fora e não tinha muitos empregados. O detalhamento das tentativas da polícia de encontrar a carta são, ao mesmo tempo, impressionantes e um pouco cômicas, pelo total absurdo que representam.

Explorei o edifício inteiro, quarto por quarto, devotando toda uma semana a cada um. Examinamos, primeiramente, o mobiliário de cada apartamento. Abrimos todas as gavetas, e creio que você sabe que, para um agente policial devidamente treinado, uma gaveta secreta é algo impossível de existir. Qualquer um que, numa revista dessa espécie, deixe escapar uma gaveta secreta é um tolo. A coisa é tão simples! Num quarto, existe uma certa quantidade de espaço a ser levado em conta. Temos regras acuradas a respeito. Nada nos escapa, nem a quinquagésima parte de uma linha.

A polícia, sob o comando do comissário, faz uma espécie de devassa no apartamento do ministro, com desmonte de mesas, cadeiras e outros móveis, em busca de uma fresta em que tenham encaixado a carta. Tudo é inspecionado com microscópio, em busca de qualquer alteração recente na superfície dos objetos. Nem o jardim fica livre das buscas, com inspeção do musgo. Nada disso, no entanto, produz o resultado esperado.

Como sugere Dupin, o amigo do narrador que ouve o relato do comissário, talvez seja a simplicidade excessiva desse mistério que o torne um labirinto sem solução. Falta lógica ao plano do comissário, e A Carta Roubada nada mais é do que uma aula de raciocínio. Poe, sempre um adepto da “unidade de efeitos”, em que cada acontecimento ou informação tem um papel específico para estabelecer o clima do fim do conto, cria um cenário em que o leitor sabe, de antemão, que a resposta está na superfície, enquanto o comissário procura nas profundezas.

Dupin sabe disso desde o começo e cria uma cilada para o comissário. Em sua primeira visita, o aconselha a refazer a procura nos aposentos do ministro D. Monsieur G. acata o conselho, mesmo o sabendo infrutífero, e retorna ao encontro dos dois amigos. Já na teia de Dupin, ele menciona que a recompensa pela resolução do crime é altíssima e daria cinquenta mil francos a quem fosse capaz de resolver o mistério.

– Nesse caso – retrucou Dupin, abrindo uma gaveta e dela retirando um talão de cheques -, você pode preencher, em meu nome, um cheque da mesma quantia. Quando o tiver assinado, eu lhe entregarei a carta.

O narrador fica tão em choque quanto o comissário, que se vê obrigado a seguir as instruções. Depois de deixar o aposento, o amigo pergunta a Dupin como ele resolveu o mistério. Tudo é uma questão, explica ele, da identificação do raciocinador com a do seu oponente.

– (…) o comissário e sua turma falham com tanta frequência porque, em primeiro lugar, levam a cabo de modo defeituoso essa identificação e, em segundo lugar, porque avaliam erroneamente, ou melhor, porque nem avaliam o intelecto que se lhe opõe. Levam em conta tão somente suas próprias noções de engenhosidade e, ao procurar algo escondido, consideram apenas os modos pelos quais eles o teriam escondido.

Já o ministro foi um pouco mais inteligente e soube avaliar as estratégias usadas por seu oponente. Sabendo que a polícia estaria em seu encalço, até facilitou as buscas em sua casa, ao se retirar todas as noites. Sabendo que buscariam lugares recônditos, colocou a carta à vista de todos.

Nem uma vez sequer ele julgou provável ou possível que o ministro tivesse depositado a carta bem debaixo do nariz de todo o mundo, com o fim de melhor impedir que qualquer porção desse mundo a percebesse.

A partir dessa ideia de se colocar no lugar do outro e pensar como tal, Dupin vai mais longe e desenvolve uma teoria que relaciona as habilidades profissionais do ministro ao seu comportamento. O objeto roubado estava à vista, mas a análise de Poe sobre como funciona a mente humana na arquitetura do crime não tinha nada de evidente. Pelo contrário: o escritor vai fundo na análise e dá a este breve conto a capacidade reflexiva de uma novela.

O ministro tinha duas formações – matemático e poeta. Em suas investigações, o comissário desconsidera esse segundo perfil e chega até a menosprezá-lo por isso. Ao falar sobre o autor do furto, Monsieur G. diz:

– Não um tolo completo – disse G. -, mas é um poeta, coisa que julgo estar bem próxima da tolice.

Dupin, por sua vez, se atenta a essa duplicidade na personalidade do ministro e contesta “o raciocínio deduzido pelo estudo matemático”. Na mescla das ciências humanas com as ciências exatas, ele decifra a engenhosidade do ministro ao apostar na “simplicidade”.

– Quero dizer que, se o ministro não fosse mais do que um matemático, o comissário de polícia não teria passado pela necessidade de dar-me este cheque. Conheço-o, contudo, tanto como matemático quanto como poeta, e minhas medidas foram adaptadas à capacidade dele, como referência às circunstâncias que o rodeavam.

Ao final do conto, ainda descobrimos que as motivações de Dupin para desvendar o mistério iam além do interesse financeiro. Na oposição política entre o ministro e a personagem dos aposentos reais, o amigo do narrador era “partidário da senhora em questão”. Embora não haja precisão sobre a data em que se passa a história, sabe-se que o período é o século XIX – uma época não muito tranquila para o império francês. A queda de Napoleão III representa a consolidação da República.

Outra razão para Dupin intervir na história é uma rivalidade pessoal com o ministro, desde que este lhe pregou uma peça certa vez em Viena. A vendeta foi tão bem calculada que, ao recuperar a carta, Dupin a substituiu por um bilhete em que citava versos do poeta francês Crébillon sobre Atreu e Tiestes, dois irmãos da mitologia grega que vivem em uma briga eterna e permeada por tragédias e destinos fatais.

Até a última frase, Poe esconde significados e interpretações. Não à toa, é considerado um dos mais importantes contistas da literatura mundial. Ele está naquele seleto grupo dos que dominam a arte de dizer muito em poucas páginas!

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