Na construção de nossa autoimagem, somos levados a acreditar no que não passa de aparência? Em Tios, sexto conto de Dicas da Imensidão, essa é a pergunta que Margaret Atwood parece fazer ao leitor, nas entrelinhas de uma história de sucesso. Está acompanhando a leitura conosco? Deixe seu comentário abaixo! Na próxima semana, vamos até a página 172, com o conto A Era do Chumbo.

Mariane Domingos e Tainara Machado

No sexto conto de Dicas da Imensidão, mais  uma vez Atwood descreve um arco narrativo que vai da infância à fase adulta, desenvolvendo as ambiguidades da personagem principal da história, Susanna.

O conto, intitulado Tios, começa com uma apresentação de sapateado de Susanna, na qual ela se apresenta sobre uma caixa de queijo com vestido de marinheira. Nesta cena, a autoconfiança da garota já é colocada à prova pelas tias, que a abraçavam e beijavam sem sinceridade. O que importava para a menina, contudo, era a opinião dos “tios”, os irmãos de sua mãe que se encarregam de sua criação após o desaparecimento de seu pai, na guerra.

Enquanto ela fazia graça na varanda, os tios aprovavam:

Os tios sorriam radiantes, batiam palmas e depois ela podia sentar em um dos colos enormes e sentir o cheiro de cerveja, sabonete, loção pós-barba, e revirar-lhe os bolsos em busca dos chicletes que estariam escondidos ali, ou persuadi-los a fazer truques de mágica.

Nesse ambiente familiar de conforto e segurança, Susanna constrói uma autoimagem inabalável e, de certo modo, até ingênua. O entorno familiar, com o apoio dado pelos tios de forma enviesada, a despeito do repúdio das tias, levou Susanna a sempre acreditar em seu encantamento pessoal. Quando por vezes rapazes ficavam bravos porque ela não os levava a sério, sua reação era inusitada:

A reação de Susanna nessas ocasiões nunca era de raiva, apenas de surpresa. A surpresa era que ela, de alguma forma, não tivesse conseguido agradar.

Depois da morte dos tios e do recebimento de uma herança razoável, Susanna arranja um emprego em um jornal, mas sua ambição a leva a buscar mais. Ela se aproxima de Percy Marrow, o crítico cultural do jornal, a quem ela concede sua compaixão e senso de defesa em troca de dicas e um espaço na coluna de Percy no veículo.

Ao longo do tempo, Susanna se revela uma jornalista de sucesso, primeiro no rádio, depois à frente de um programa na TV. Em um casamento bem sucedido, ela não parece exatamente se deslumbrar por suas conquistas pessoais e profissionais, mas age como se aquele entorno fosse algo de direito, uma herança que ela receberia, mais cedo ou mais tarde.

Como em grande parte dos contos contidos neste livro, a chave para a compreensão do texto está nos últimos parágrafos. Na parte final de Tios, Susanna é informada que Vegê, seu amigo de longa data, em quem ela se apoiou para se catapultar na carreira de jornalista, escreveu em suas memórias duras críticas à Susanna.

Ali, a personagem reflete, ele contou a história  como ela aconteceu – o encontro no bebedouro, o apoio para que saísse do jornal, as conversas e dicas trocadas entre os dois -, mas sob outro viés, retratando-a como uma mulher ambiciosa, sem escrúpulos, disposta a qualquer coisa para subir na vida, inclusive um casamento por dinheiro.

Susanna desaba. Em sua cama, no escuro, ela sonha com a apresentação de dança que abre o conto. Dessa vez, contudo, não são mais  os tios que estão ali para aplaudir e  apoiar, fazendo-a com que saísse em êxtase do auditório.

Quem senta nas primeiras fileiras é sua mãe, uma figura entediada.

Ao lado dela, estava sentado o pai de Susanna, que afinal voltara para casa da guerra, do terreno baldio. Ele estava de uniforme. O rosto dele era magro e cheio de ressentimento. Ele a encarava com ódio.

Nesse fim ambíguo, refazemos o caminho percorrido por Susanna, na tentativa de entender se ela era uma grande arrivista e aproveitadora, ou se as decepções do caminho apenas a fizeram olhar para a outra face do espelho, no qual também há reprovação e desgosto. De qualquer forma, descobrimos com Susanna como nosso senso de identidade pode ter a mesma consistência de um castelo de areia, ruindo na primeira ventania.

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