[Escritores] Mario Vargas Llosa

Cheguei atrasada. As luzes já estavam apagadas e não conseguia enxergar se havia lugares mais à frente. Senti um desânimo. Não era hoje que eu veria tão de perto um Nobel de Literatura.

Mas tudo bem, na minha lista “Indicadores de Sucesso na Vida”, eu havia sido modesta na meta. Tinha estipulado apenas “conhecer um prêmio Nobel de Literatura”. Não havia nenhuma cláusula sobre proximidade ou interação. Podia dar um check.

O mediador fez uma breve apresentação do evento e do escritor. Chuva de aplausos, iluminação no púlpito, uma voz serena e firme (até demais para seus 80 anos) retomou o silêncio. Mario Vargas Llosa estava ali, a alguns metros de distância, falando um espanhol tranquilo e muito agradável.

No início, confesso que me distraí e perdi alguns momentos. Primeiro, porque as luzes se acenderam e eu consegui um lugar mais para frente. Encolhe pernas, pede licença, esbarra nas pessoas. Odeio fazer isso, mas foi por uma boa causa. Agora, já podia dar um check na minha lista com mais convicção. O segundo motivo da minha distração foi alguém, ao meu lado, que escutava no volume mais alto a tradução simultânea (e desnecessária) da palestra.

Passada essa confusão inicial, embarquei na narrativa de Llosa. O tema deste ano do Fronteiras do Pensamento, evento que trouxe o escritor peruano, é “A Grande Virada”. A abordagem escolhida por Llosa foi a virada que marcou sua formação política. Ele narrou por mais de uma hora sua trajetória nesse campo, que começou aos 14 anos, época em que o Peru atravessava a ditadura do general Odría.

A militância comunista não durou muito tempo. Aos poucos, a identificação com a esquerda também ruiu e, nesse momento, Llosa diz ter se sentido órfão. “El vacío llené gracias a las lecturas”, disse ele. Llosa contou como foi buscar nos livros respostas para as dúvidas que rondavam seu pensamento. O escritor começou, então, uma defesa contumaz do liberalismo, única corrente ideológica na qual ele afirma ter encontrado a possibilidade de coexistência e diversidade. “La libertad es una sola. La libertad en todos los dominios civiliza”.

Não vou negar que não esperava ouvir uma palestra com foco tão político. Embora saiba que Llosa tem esse viés muito forte (ele já foi até candidato à presidência do Peru), não achava que essa seria a abordagem escolhida por ele. Eu esperava mais literatura. Talvez porque acho que nós dois combinamos mais nesse aspecto do que em política. Mesmo assim não saí de lá decepcionada, pelo contrário. Mesmo não sendo o tema que eu esperava e apesar de as ideias de Llosa não se encaixarem totalmente na minha visão de mundo, ainda consegui sair de lá realizada, satisfeita. Por quê?

A resposta não está no quê, mas no como. Posso não concordar com tudo que Llosa falou, mas ele sabe falar. Ele sabe argumentar. Ele sabe opinar. Daí parei para pensar como trocas enriquecedoras como essa são raras nos dias de hoje. Carecemos de mais reflexão antes da expressão. Falamos, depois pensamos (às vezes, nem depois). Os diálogos se tornam, sem percebermos, monólogos. Em entrevista ao El País, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman expressou muito bem essa carência:

…nas redes, é tão fácil adicionar e deletar amigos que as habilidades sociais não são necessárias. Elas são desenvolvidas na rua, ou no trabalho, ao encontrar gente com quem se precisa ter uma interação razoável. (…) o diálogo real não é falar com gente que pensa igual a você. As redes sociais não ensinam a dialogar porque é muito fácil evitar a controvérsia… Muita gente as usa não para unir, não para ampliar seus horizontes, mas ao contrário, para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco de suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos de suas próprias caras. As redes são muito úteis, oferecem serviços muito prazerosos, mas são uma armadilha.

Conhecer o lado político de Llosa, que até então eu tinha evitado, foi muito interessante. O processo de escrita sempre reflete a história e as experiências do escritor, mas acredito que a literatura está acima disso. Pelo menos a escrita que perdura, como é a de Llosa. Ele mesmo falou, durante a palestra, sobre como a escrita flui de maneira diferente quando ele escreve um romance e quando está produzindo um artigo. No primeiro, quem manda são as emoções e, no segundo, a razão.

Na hora, lembrei-me de uma frase do escritor israelense Amós Oz, tão conhecido pelos seus romances, quanto por suas frequentes opiniões acerca do conflito Israel-Palestina:

Nunca escrevi um romance ou um conto para levar os leitores a mudar de ideia sobre o que quer que seja – nunca. Quando sinto essa necessidade, escrevo um ensaio ou um artigo. Chego a usar duas canetas diferentes, como um gesto simbólico: uma para contar histórias, a outra para dizer ao governo como se comportar.

Llosa me parece ser do tipo que convive com essa divisão, pois ele sabe que ela dará mais fôlego à sua obra. Certa vez, em entrevista à famosa revista literária Paris Review, o escritor norte-americano Ernest Hemingway foi questionado sobre até que ponto um escritor deve se ocupar dos problemas sociopolíticos do seu tempo. Sua resposta foi:

Cada um tem a sua própria consciência, e não deve haver regras sobre como uma consciência deve funcionar. Tudo o que se pode ter certeza acerca de um escritor politicamente orientado é que, para a sua obra perdurar, você terá de saltar a política ao lê-la. Muitos dos chamados escritores politicamente engajados mudam de política com frequência. Isto é muito estimulante para eles e para suas resenhas político-literárias. Às vezes eles têm até de reescrever seus pontos de vista… e às pressas. Talvez isso deva ser respeitado como uma forma de buscar a felicidade.

Llosa soube construir uma obra que irá resistir às intempéries do tempo, porque sua paixão pelo conhecimento e pelos livros sobrepõe qualquer paixão política. Ele não é apenas um escritor (e que escritor!). Llosa é um leitor, um estudioso e um ótimo orador. Escutá-lo será sempre enriquecedor, porque ele leva a literatura não apenas em sua escrita, mas principalmente no seu modo de viver e de pensar. Em um artigo recente para o El País, Llosa escreveu:

Talvez seja um pouco otimista falar do futuro quando se faz 80 anos. No entanto, me atrevo a fazer um prognóstico sobre mim mesmo; não sei que coisas podem acontecer comigo, mas de uma tenho certeza: a não ser que me torne totalmente idiota, no que me resta de vida continuarei obstinadamente lendo e escrevendo até o final.

Nessa declaração, ele me recordou um de seus personagens, Don Rigoberto, do romance O Herói Discreto. À certa altura do livro, Don Rigoberto recebe em sua casa a visita dos filhos ineptos de seu amigo, que estavam atrás da herança do pai:

– Que biblioteca você tem, tio – exclamou Escovinha, apontando as prateleiras bem-arrumadas do escritório contíguo. – Quantos livros, que diabo! Já leu todos?
– Bem, todos ainda não – “Este é o mais burro”, decidiu. – Alguns são apenas livros de consulta, como os dicionários e as enciclopédias daquela prateleira do canto. Mas minha tese é de que tenho mais chances de ler um livro que esteja aqui em casa do que outro que ficou em uma livraria.

O Herói Discreto já era um livro especial para mim. Agora, ainda mais. Além desse belo trecho (que frequentemente uso como desculpa para minhas compras em livrarias), ele tem o autógrafo de Mario Vargas Llosa, um Nobel de Literatura.

Pois é, queridos leitores. Aquele desconforto inicial em dar um check na minha lista, quando na verdade tinha visto Vargas Llosa apenas de longe, se esvaiu. Na saída do evento, estava tão distraída e pensando sobre tudo que tinha ouvido, que só não perdi a oportunidade porque minha irmã me parou e disse: “Olhe, ele está ali!”. Uma pequena fila se formava para a sessão de autógrafos. Como uma boa leitora prevenida, eu tinha o livro na bolsa. No momento em que entreguei o exemplar a Llosa, cheguei perto o suficiente para reparar que, além do belo terno, ele usava elegantes abotoaduras.

Autógrafo, palestra e abotoaduras: acho até que posso dar um double check na minha lista.

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Mariane Domingos

Mariane Domingos

Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
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2 Comentários

  1. Cara Mariane,
    Lendo este breve , mas ótimo texto sobre a experiência de ouvir Mario Vargas Llosa , e claro para onde foi levada , fui levado a um livro dele; na verdade , um conjunto único de ensaios e artigos , chamado A civilização do espetáculo , e particularmente a um artigo para o El Pais onde Llosa , possivelmente com poucas esperanças , aborda a questão da incapacidade agora de leitores de livros inteiros , do porte de Guerra e Paz ou Dom Quixote.
    A partir dessa introdução gostaria de sugeri-las , a propósito da recente celebração (Abril 2016) de 400 anos da morte de Shakespeare e Cervantes : Aproveitem essa marca e tragam para este convívio , Dom Quixote – que confesso após a primeira leitura, tal como Sancho , não me desgrudei e fui direto para uma segunda e terceira leituras – e por que não , Hamlet ou Rei Lear , obras indispensáveis do bardo Inglês .
    São todas leituras para esses tempos de “muita informação e pouco conhecimento” (essência do artigo acima de Vargas Lllosa).
    Finalizando, agradeço as indicações de leitura e após terminar Hibisco Roxo – saudades da Tia Ifeoma – “ouço” agora as vozes de Tchernóbil . Leituras, também , atemporais .
    José Luiz (Aliança Francesa)

    • Mariane Domingos

      22 de maio de 2016 at 23:11

      José Luiz, sugestões mais que aceitas! Acho que vou começar por Dom Quixote que é, sem dúvida, uma lacuna inaceitável na minha formação literária. Recentemente, li um texto do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos em que ele narra a presença de Cervantes nos vários momentos de sua vida, desde o pesa-papéis do Quixote que ficava no consultório do pai quando ele era criança até sua primeira viagem à Espanha, quando comprou a melhor e mais completa edição dessa obra. Segundo ele, os meses que levou para ler o livro todo “foram os quatro meses mais felizes de minha vida como leitor”. Acho que você vai gostar e se identificar com este relato: http://www.blogdacompanhia.com.br/2016/04/carregando-seu-cervantes/

      Já estamos lhe esperando no clube do livro de Vozes de Tchernóbil! Prepare-se, porque as 50 primeiras páginas são arrebatadoras! A sutileza de Chimamanda Adichie deu lugar à objetividade de Svetlana Aleksiévitch. Cada uma a seu modo, as duas nos dizem boas verdades, daquelas que precisamos ouvir!

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