[Resenha] O Sol É Para Todos

Atire em todos os que você quiser, se puder acertá-los, mas lembre-se que é um pecado matar uma cotovia.

To Kill a Mockingbird, o título original do livro da americana Harper Lee, foi traduzido em português para o insosso O Sol É Para Todos. Perdeu-se muito do simbolismo original, já que a cotovia é um das metáforas do livro para a inocência, ou a perda dela, o tema central de um dos livros mais populares dos últimos 50 anos.

Quando recebe a recomendação acima de seu pai, Scout, a narradora do livro, uma menina alegre, esperta e indagadora de seis anos,  se dá conta de que esta é a primeira vez que o ouviu falar em pecado. Atticus Finch, seu pai, não é um cidadão comum de Maycomb, a pequena cidade do Alabama onde se passa a história. Ao contrário da maioria dos habitantes do vilarejo, Atticus Finch é um homem pouco dado a convicções religiosas, mas tem fortes regras morais. E uma delas é que prejudicar, de qualquer forma, alguém mais fraco ou com menos poder de defesa é um pecado sem expiação.

Atticus é diferente dos demais por muitos outros fatores. Em uma das passagens mais engraçadas (fofas mesmo, eu diria, e o livro é ótimo por ser recheado delas) de O Sol é para Todos, Scout e Jem, seu irmão mais velho, se questionam sobre as habilidades do pai. Ele não é um herói comum. Aos cinquenta anos, é muito mais velho do que a média dos pais de seus colegas na escola. “Nosso pai não fazia coisa alguma”, reclama Scout. Ele não joga bola, já é um pouco cego e usa óculos, não gosta de caçar, de beber ou de fumar.  Sua atividade principal? “Ele se sentava na sala de estar e lia”. Não tem como não simpatizar, não é?

Ao mesmo tempo, diz a menina, Atticus não seguiu tão inconspícuo nesta história quanto as crianças gostariam. Naquele verão, ele começaria a defender Tom Robinson, um jovem negro, com uma deficiência em uma das mãos – chave de sua defesa -, acusado de estuprar uma garota branca. Atticus é o único que aceita defendê-lo, em um julgamento de cartas marcadas, em que todos sabem quem é o culpado e quem vai ser punido.

O sistema que as crianças vão precisar entender com esse julgamento desafia a lógica ainda dominada pela justiça de Scout e Jem. A tia Alexandra, que chega para ajudar na criação das crianças e é um corpo estranho na família, absorvido apenas aos poucos, explica as regras sociais rígidas daquela sociedade. Cada família, diz ela, tem uma característica que a define de geração em geração. Então se você é um Cunningham, é provável que você tenha uma queda por álcool e hábitos considerados horríveis por Finchs como eles.

Ou então se você é um Ewell, a família da menina que acusa Tim Robinson de estupro, é provável que você seja miserável, tenha uma vida infeliz, que o pai beba todo o dinheiro da ajuda assitencial que recebe e que nenhuma das crianças frequente a escola. “A cidade dava a eles algum dinheiro como ajuda assistencial, cestas de Natal e as costas”, pensa uma vez Scout.

O sistema judiciário, não nos deixa esquecer Atticus, é um reflexo de cada homem sentado no banco do júri, que por sua vez é um espelho da sociedade. Não espere, portanto, decisões justas de uma sociedade injusta.  E assim, Tom é culpado de um crime que não cometeu, porque mesmo que a situação de penúria dos Robinson e dos Ewell seja praticamente a mesma, ou ainda que indício de abuso por parte do pai, Bob Ewell, sejam incontornáveis, culpar um negro era sempre melhor do que culpar um branco.

Para as crianças, entender essas diferenças exige a perda da inocência. Quando Scout e Jem acompanham Calpurnia à missa, ficam encantados com a capacidade do coro de seguir as frases cantadas pelo pastor. O reverendo então pede que o Senhor abençoe os doentes e os em sofrimento, “um procedimento não muito diferente daquele adotado em nossa igreja”.

Em outro momento, eles discutem o que é “background”. Jem ensina à irmã que background não quer dizer família tradicional, ou antiga. “Acho que quer dizer há quanto tempo sua família sabe ler e escrever . Estudei isso muito a fundo e é a única razão em que posso pensar. Em algum momento os Finch estavam no Egito e aprenderam um ou dois hieróglifos e um deles os ensinou a seu garoto”.

Scout discorda. Walter,  seu colega de escola que mal consegue juntar letras, é inteligente, mas acaba atrasado porque tem que ajudar o pai no trabalho. Ela completa:

Só existe um tipo de gente. Gente.

E Jem responde: “É, eu costumava pensar isso também quando tinha sua idade”.  Aos poucos, eles aprendem sobre desigualdade e perda das virtudes da juventude.

Pelo ponto de vista inocente e sensível de Scout, Harper Lee questiona não apenas a segregação racial que predominava nos Estados Unidos da década passada, mas várias outras divisões sociais que não fazem sentido em um mundo em todos deveriam ser apenas “gente”. Scout, por exemplo, sofre por ser menina, e pelas expectativas de comportamento que isso acarreta. Tia Alexandra exige que ela se porte como uma “lady”, mas ela é apenas uma criança, que gosta de correr e se sujar como os meninos da rua. Na escola, enfrenta a desaprovação da professora, por já saber ler antes de toda a sua classe. Dos colegas, recebe provocações, mas é proibida de revidá-las.

A passagem mais emblemática desse estranhamento entre o que é diferente e, portanto, inaceitável, está logo na abertura do livro. Scout, Jem e Dill, um amigo dos irmãos que passa férias de verão na casa da tia, cismam com Boo Radley, o vizinho do fim da rua que não sai de casa há vinte e cinco anos. Ele poderia ao menos vir ao portão de vez em quando, reflete Scout, para ser como todo mundo. De partida, Harper Lee nos mostra que o diferente causa estranheza, atrito, perseguição.

O Sol É Para Todos é um dos livros mais populares dos últimos 50 anos, com mais de 30 milhões de cópias vendidas. Ganhou uma série de prêmios e quase cinco décadas após a sua publicação, continua perfeitamente atual. Ainda discutimos preconceitos, falamos de construir muros nos Estados Unidos, imaginamos separar o Brasil.

PS: No ano passado, Harper Lee lançou a continuação de O Sol É Para Todos, que trata do retorno de Scout para casa, depois de uma temporada longe do Alabama. Vá, Coloque um Vigia está na lista de leituras para o ano. E vocês, já leram? Gostaram? Deixem seus comentários abaixo!

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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3 Comentários

  1. Ótima resenha! Esse livro é exelente

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