[Vozes de Tchernóbil] Semana #3

Para a próxima semana, vamos até a página 181, logo antes de começar o “Monólogo sobre a filosofia cartesiana e sobre como você come um sanduíche contaminado com outra pessoa para não passar vergonha”.

Por Tainara Machado e Mariane Domingos

Depois dos capítulos de ambientação, Aleksiévitch relata na primeira parte de Vozes de Tchernóbil a situação de “terra arrasada” que passou a caracterizar aquelas aldeias e vilarejos perto de Prípiat e do reator. É a Terra dos Mortos, define a autora.

Quem se recusou a evacuar a região, ou aqueles mais insistentes que retornaram para suas casas depois de alguns anos, vivem, de certa forma, como fantasmas na “zona proibida”. As aldeias estão vazias, a maioria das casas foi abandonada e saqueada. Não sobraram vizinhos, poucos animais sobreviveram e quem tomou a decisão de ficar vive uma dieta de subsistência, a partir da colheita do que ainda é possível plantar na região. Sentem-se solitários, mas preferem esse destino a abandonar sua terra:

Vou ao cemitério. (…) Eu me sento perto de todos eles. Suspiro. E até posso falar com eles, tanto com os vivos quanto com os mortos. Para mim não há diferença. Ouço tanto uns quanto os outros. Quando você está só… E quando está triste. Muito triste…

Gabriel García Márquez, em sua obra Cem Anos de Solidão, traduziu muito bem esse estado de desolação que atinge as pessoas que se veem privadas, de repente, de tudo que compõe sua realidade:

…nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da nossa solidão.

Muitos dos que ficaram eram também os mais velhos das aldeias, para quem era custoso tentar se adaptar, depois de uma vida inteira no campo, à vida nas cidades. A falta de informação que marcou a resposta das autoridades soviéticas ao desastre manteve parte dessa população no escuro sobre as decisões que estavam tomando. A radiação, dizem quase todos, é invisível e demora alguns meses para mostrar seus primeiros sinais; era um risco a se correr.

O abandono das casas, a tentativa de se esconder nos bosques, os lares saqueados eram também lembranças que já existiam na mente dos velhos aldeões. Em diversos relatos, a semelhança com a Segunda Guerra Mundial, uma cicatriz que aquele povo já carregava, mesmo 40 anos distante no tempo, é ainda muito marcante. Piotr S., um psicólogo, relembra:

Eu pensava que o acontecimento mais terrível da minha vida já tinha passado. A guerra. Que já estava protegido, já estava a salvo. A salvo graças ao que sabia, ao que tinha vivido. Mas…

Em outro depoimento, uma mulher se prepara para deixar a aldeia, como todos ali, até que escuta um relato de que, em uma vila próxima, um casal de velhos se escondeu no bosque com sua vaca e conseguiu ficar.

Como na guerra. Quando os destacamentos queimavam as aldeias… De onde vem tanta desgraça?

Esse é um capítulo sobre perdas. Não só a perda da terra, da vida em aldeia, mas da própria individualidade. Nikolai, “um pai”, como define Aleksiévitch, menciona em seu depoimento que levava uma vida absolutamente normal, com emprego, férias uma vez por ano.

E de repente, de um dia para o outro, você se torna um homem de Tchernóbil. Um animal raro! Uma coisa que interessa a todo mundo, mas que ninguém conhece. Você quer ser como todas as pessoas, mas isso não é mais possível.

A questão do pertencimento é outra que se sobressai nos depoimentos deste capítulo. Para muitos, Tchernóbil foi a salvação, por mais paradoxal que seja. Com o esfacelamento da União Soviética, depois da queda do muro de Berlim, muitos dos países-satélite passaram a expulsar os russos que viviam ali. A questão da nacionalidade, um conceito que não existia quando todos eram soviéticos, coloca em confronto tadjiques, russos, tártaros, em uma guerra que ainda hoje não acabou completamente, com movimentos separatistas na região da Geórgia.

Antes eu achava que nunca mais teríamos guerra. (…) Ninguém poderia nos vencer! E então, começamos a nos matar uns aos outros… Hoje, a guerra não é mais como antes (…) Agora um vizinho mata o outro; os meninos que estudaram juntos na escola se matam, estupram as meninas que dividiam a carteira com eles. Estão todos loucos…

Este é um dos depoimentos mais tristes contados por Aleksiévitch na primeira parte. A história é narrada por uma mãe e uma filha, esta grávida, que fogem do Tadjiquistão em direção à Bielorussia. A menina conta que era enfermeira em um hospital e assistia uma mulher em trabalho de parto quando a sala é invadida por homens encapuzados. O neném nasce e os bandidos questionam se a criança é de Kuliab ou Pamir, duas cidades do Tadjiquistão em guerra. As enfermeiras não respondem e eles jogam o recém-nascido pela janela.

Entre o medo do conhecido e do desconhecido, essas pessoas optaram pelo desconhecido. Sabemos que ambas as violências são incontornáveis, que a radiação é tão onipresente quanto a violência armada, ainda que essa seja mais visível, mais palpável. De qualquer modo, é bastante compreensível que essas pessoas tenham adotado Tchernóbil como o mais improvável dos lares. Ali podem ao menos se sentir em paz, sem se esconder o tempo todo, ainda que se sintam apátridas. Ou, como define a mãe:

Nós perdemos de uma só vez duas pátrias: o nosso Tadjiquistão e a União Soviética.

Outra mulher, que veio da Quirguízia, ecoa esse pensamento:

Nós tínhamos uma pátria, agora não temos mais. Quem sou eu? A minha mãe era ucraniana e o meu pai, russo. Nasci e cresci na Quirguízia, o meu marido é tártaro. Quem são meus filhos? Qual é a nacionalidade deles? Todos nós nos misturamos, o nosso sangue misturou.

A zona proibida não é o único tema desta parte do livro. Aleksiévitch traz à tona também as histórias dos liquidadores – os primeiros soldados que foram ao local da explosão para conter o incêndio e evacuar as áreas contaminadas. Eles se juntaram aos robôs naquele combate em que pouco se sabia sobre o inimigo:

De cima… podíamos ver um prédio destruído, montes de cacarecos despedaçados. E uma quantidade gigantesca de pequenas figuras humanas. Havia um guindaste da Alemanha Federal, mas morto; percorreu um pouco o teto e morreu. Os robôs morriam. (…) via-se que queimavam por dentro devido à alta radiação. Por outro lado, os soldadinhos correndo nos seus trajes e luvas de borracha, estes funcionavam. Tão pequenos, vistos do céu.

Os depoimentos que Aleksiévitch traz levantam a questão sobre o quanto esses “soldadinhos correndo nos seus trajes e luvas de borracha” sabiam sobre o que estava acontecendo. Foi heroísmo ou o governo escondeu a real situação para conseguir recrutar esses heróis?

Assim como no capítulo anterior, que traz a visão dos remanescentes da zona proibida, as comparações de Tchernóbil com o cenário de guerra também são frequentes no discurso dos soldados:

Eu me lembro de tudo, pensava no que contar ao meu filho. Mas quando voltei, ele perguntou: “Papai, o que aconteceu lá?”. “Uma guerra.” Não encontrei outra palavra.

Nada era suficiente para explicar Tchernóbil. Alguns diziam até preferir a guerra: “ali, a morte era coisa normal… Compreensível…”. Durante a leitura, nos lembramos de um outro livro, já comentado aqui no blog, que traz um relato de guerra. Na obra É isto um homem?, Primo Levi, escritor judeu italiano que foi prisioneiro de Auschwitz, conta sua experiência:

Imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses considerando puros critérios de conveniência.

A sensação que temos é que, embora avancemos na leitura de Vozes de Tchernóbil, o entendimento dessa catástrofe continua inalcançável. Mas, diferente de quando lemos as notícias que só trazem números e fatos frios, as histórias contadas por Aleksiévitch despertam um sentimento importante: a indignação. Indignar-se com o sofrimento alheio é o primeiro passo para combater a banalização daquilo que deve ser inaceitável. Vivemos tempos sombrios, em que, mais do que nunca, é preciso resgatar a chamada “afinidade humana”.

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2 Comentários

  1. Interessante vocês falarem da questão da identidade, pois foi o que mais ficou evidente nas páginas desta semana. O homem perdeu a individualidade e virou simplesmente o “homem de Tchernóbil” – radioativo, perigoso, intrigante aos olhos dos outros – o qual não era mais um pai, irmão, filho ou esposo, mas alguém solto no mundo por culpa de algo que não conseguia ver, sentir, ouvir…

    E essa questão dos que chegaram praticamente refugiados em Tchernobil e preferiram o desconhecido à guerra visível é bem atual se formos pensar que os conflitos dentro da ex URSS ainda se mantém! Veja a Ucrania. A identidade é um problema real na região e a autora falou um pouco disso em uma entrevista que deu esta semana ao El Pais…

    Em relação aos liquidadores, pra mim ficou claríssimo que a URSS escondeu os danos e a verdade dos convocados. Os relatos são impressionantes e a tentativa de heroicizar aqueles que o próprio Estado mandou para a morte é abominável – é claro que o trabalho foi necessário, mas nem por isso deixa de ser revoltante a indiferença da Rússia em relação aos liquidadores, suas famílias e as pessoas residentes na região!

    • Tainara Machado

      22 de maio de 2016 at 20:25

      Ana, o relato do bebe recem-nascido jogado pela janela do hospital me chocou muito, talvez até pela atualidade desse conflito. Não só essa necessidade de imposição de nacionalidade continua presente nos conflitos separatistas nos países da ex-URSS, mas há muitas outras mortes semelhantes. Como vemos no depoimento no livro, eles eram irmãos, estudavam juntos, “rezavam pelo mesmo Corão”, e agora matam uns aos outros. Mais atual (e triste) do que nunca.

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