Para a próxima semana, vamos até o final da segunda parte, na página 237.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Lembranças, memórias e a necessidade de seguir em frente mesmo sem saber exatamente como lidar com o passado. Nessa segunda parte, intitulada A Coroa da Criação, Aleksiévitch nos mostra que mais difícil que assimilar o alcance geográfico da radiação é compreender seu alcance no tempo.

A catástrofe de Tchernóbil não viajou apenas de um espaço a outro. Ela viaja por gerações, seja por meio dos traumas que marcam famílias inteiras, seja pelo sofrimento físico manifestado em doenças nunca vistas. A impossibilidade de entender essa espécie de eternidade do desastre está entre as reflexões de um dos entrevistados dessa segunda parte:

Recordo uma conversa com um cientista. “Isso é para mil anos”, ele me explicava, “o urânio se desintegra em 238 semidesintegrações. Se traduzirmos em tempo, significa um bilhão de anos; e no caso do tório, trata-se de 14 bilhões de anos.” Cinquenta. Cem. Duzentos anos. E depois? Depois é puro estupor. Mais que isso, a minha mente não dá conta de imaginar. Deixa de compreender o que é o tempo. Onde estou?

Um dos relatos mais impressionantes dessa parte do livro é o de Larissa Z., uma mulher que se tornou mãe depois do desastre. Ela vivia em um povoado que deveria ter sido evacuado, mas não foi, porque “o Estado não tinha dinheiro”. A bebê do jovem casal nasceu como um “saquinho vivo, costurado por todos os lados, não tinha nem uma fenda sequer, só os olhos abertos”, descreve a mãe. Todos os orifícios tiveram que ser construídos por uma série de cirurgias. Ainda assim, a menina não conseguia fazer xixi, precisava ser forçada pela mãe. Acostumada aos hospitais, sem saber o que é levar uma vida normal – uma vida antes de Tchernóbil – a garota já havia superado todas as expectativas e chegado aos quatro anos de idade. Quatro anos que em nada se assemelham à ideia que temos de infância:

…brinca de forma diferente, não brinca de lojinha, de escolinha, brinca de hospital com as bonecas, dá injeções, põe o termômetro, prescreve gotinhas; se a boneca morre, ela cobre com um lenço branco.

Mesmo com todos os indícios de que a radiação era a causadora da patologia, as autoridades locais evitaram associar a doença à catástrofe. Diziam que só daqui 20 ou 30 anos, quando o “banco de dados” fosse suficiente, seria possível fazer essa relação. A mãe não se conformava, porque, para ela, descobrir a causa era muito mais do que obter uma resposta lógica. Larissa precisava aliviar a culpa que sentia. Um culpa que, pelo que percebemos em outros relatos, assolou vários pais e mães da época.

Havia algo que não podiam compreender. Não queriam entender. Eu precisava saber que não éramos, eu e o meu marido, os culpados. Que não era o nosso amor.

O domínio do discurso pelas autoridades era total. Um jornalista relata que tentou inserir em uma reportagem o depoimento da mãe de um dos bombeiros que esteve no incêndio do reator. Após enterrar o filho em Moscou, ela acabou voltando para aldeia evacuada, onde continuou a plantar e colher na terra contaminada. O redator-chefe retirou esse trecho do artigo e foi taxativo em sua resposta:

“Não quero gente no jornal que difunda o pânico. Escreva sobre os heróis, os soldados que subiram no teto do reator.”

Herói… Heróis. Quem são eles? Para mim, é o médico que, apesar das ordens de cima, dizia a verdade aos homens. E o jornalista, e o cientista. Mas, como o redator-chefe disse em uma reunião: “Lembrem-se! Agora entre nós não há nem médicos, nem professores, nem cientistas, nem jornalistas: hoje só existe para nós uma profissão: a de homem soviético”. Será que ele realmente acreditava nessas palavras?

Sem uma imprensa ativa, sem múltiplas vozes, restava creditar na normalidade da situação. Se os pássaros estavam sonolentos e batiam com os vidros dos carros, era melhor beber para esquecer. Quem era enviado para o local não recebia vestimenta adequada, no máximo uma máscara fina, usada na fábrica de concreto. Iodeto de potássio, que poderia minimizar os efeitos da radiação, não era vendido nas farmácias, e custava uma pequena fortuna, o que o tornava inacessível para quase todos. A “cura” acabava vindo da vodca.

A resposta das autoridades foi desorganizada. Algumas vilas foram evacuadas, mas sem muitas regras. Outras ficaram pelo caminho. O governo reagiu à radiação como reagiria diante de um exército armado. A sociedade soviética havia sido educada para combater a guerra e não sabia agir de outra forma.

Surgiu um novo inimigo, e o novo inimigo se apresentava diante de nós com outro aspecto. Nós recebemos uma educação militar. Um pensamento militar. Fomos preparados para repelir e liquidar um ataque nuclear. Para enfrentar guerras químicas, biológicas e atômicas. Mas não para expelir radionuclídeos do nosso organismo. Nem para medi-los. Nem para vigiar o césio e o estrôncio. Não se pode comparar isso com uma guerra, não é exato, mas todos comparam.

Nesse capítulo, também percebemos uma certa hostilidade, por parte de alguns entrevistados. Eles não se sentem confortáveis com a curiosidade do mundo em relação aos “homens de Tchernóbil”, como ficaram marcados. Não se convenceram de que o interesse de jornalistas e cientistas fosse um interesse genuinamente humano.

Do meu ponto de vista, somos material para pesquisas científicas. Para algum laboratório internacional. Do centro da Europa. Dentre nós, bielorrusos, dentre os 10 milhões de habitantes, mais de 2 milhões vivem em terras contaminadas. Um laboratório natural.

Estamos quase na metade do livro. Talvez já seja hora de arriscar e dizer que encontramos esse interesse genuinamente humano na obra de Aleksiévitch. Por isso, ela se destaca em meio a tudo (um tudo que ainda é pouco) que foi falado sobre Tchernóbil. Em um dos depoimentos dessa última leitura, um médico rural, que atende aos pacientes da zona contaminada diz:

Gente boa, não nos pertubem! Deixem-nos em paz! Vocês falam conosco e vão embora, mas nós temos que viver aqui. (…)

Diariamente ouço o que dizem, como se lamentam e choram. Gente boa, vocês querem saber a verdade? Sentem-se ao meu lado e anotem. Mas ninguém vai ler um livro assim…

Aleksiévitch não ouviu e simplesmente foi embora. Ainda bem que ela acreditou que muita gente leria um livro assim.

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