Infelizmente, a leitura está chegando ao fim! Para a próxima semana, vamos até a página 349.

Por Tainara Machado e Mariane Domingos

No último post, falamos aqui do trabalho primoroso de edição de Svetlana Aleksiévitch, de sua capacidade de sobrepor narrativas sem torná-las repetitivas e de nos conduzir, ao longo da história, pelos diferentes sentimentos com que foram confrontados os habitantes de Tchernóbil e arredores.

O trecho que lemos nesta semana traz com mais ênfase a visão de cientistas e pesquisadores que foram enviados ao reator pelas autoridades. Ao longo dos depoimentos, é levantado um traço muito interessante da relação dos soviéticos com a ciência: as zonas que foram atingidas pela explosão viviam, simultaneamente, em duas eras. A evolução, ou melhor, o salto tecnológico dessa nação foi brusco e setorizado. Não houve preparação. “O átomo e a pá” coexistiam:

Dentre os trabalhadores da central de Tchernóbil, muitos eram camponeses. De dia estavam nos reatores, e à noite, cuidando das suas hortas, ou na casa dos pais, na aldeia vizinha, plantando batatas com a pá ou espalhando esterco com a forquilha. (…) A sua consciência oscilava entre dois tempos, entre duas eras: a da pedra e a atômica. E o homem, como um pêndulo, movia-se de um extremo a outro.

Até entre os pesquisadores e cientistas, o nível de compreensão da extensão do acidente era desigual, mas não resta dúvida de que essas eram as pessoas que tinham mais clareza sobre as consequências perniciosas do desastre. O que você faz quando sabe o que está acontecendo e não tem nenhuma reação? Em um dos relatos, Aleksiévitch parece confrontar o narrador com essa questão.

Eis a resposta à sua pergunta: por que nós sabíamos e nos calamos? Por que não saímos à praça e gritamos? Nós relatávamos. Eu te disse que incessantemente fazíamos relatórios. Mas calávamos e nos submetíamos sem objeções às ordens por disciplina do Partido.

A maioria da população simplesmente não acreditava que o “átomo de uso pacífico”, como diz uma das narradoras, tinha exatamente os mesmos efeitos que uma bomba nuclear, no caso de vazamentos ou explosões. Até os cientistas relutavam em acreditar que a poderosa ciência os tinha deixado na mão.

Mesmo aqueles que sabiam, ou eram confrontados pela realidade, preferiam não enxergá-la. Uma professora rural certa vez recebeu duas amigas em casa, uma delas médica. Uma comenta que vai levar as crianças para a casa de seus pais e que não se perdoaria caso eles adoecessem. A outra responde que a situação está sob controle, que mandaram tanques e helicópteros, tropas. Entre acusações mútuas, a segunda acusa a primeira de ser uma traidora. “O que seria de nós se todos se comportassem como você?”. A professora, de certa forma, concorda.

E todos nós que estávamos ali, inclusive eu, tínhamos a sensação de que minha amiga nos deixava alarmados. De que nos privava de equilíbrio, de confiança em tudo aquilo que estávamos acostumados a confiar. Devíamos esperar até que dissessem algo. Anunciassem.

A fé, ali, era diferente da que estamos habituados. Em vez de fé religiosa, acreditava-se na invencibilidade do homem – “fomos educados no peculiar paganismo soviético: o homem é soberano, a coroa da criação” – e também no poder de redenção do Partido, em sua capacidade de organizar e vencer obstáculos, em tornar a vida de todos uniforme. Era o tempo dos heróis.

Uma vez por semana, diante da formação, entregavam diplomas de honra àqueles que tinham cavado melhor a terra. Aos melhores coveiros da União Soviética. Isso não é loucura?

De fato, era. Mesmo assim, os jovens eram atraídos pelas promessas de honraria de guerra e pela prosperidade que poderia advir do sacrifício caso aceitassem – ainda que esta não fosse exatamente uma escolha – partir para Tchernóbil. Só não havia mais como pagar aquelas dívidas.

Aqueles eram os estertores do regime soviético, já muito próximo do fim, e não havia nas autoridades disposição ou capacidade de enfrentar o problema. Continuaram a fazer o que já era praxe: maquiar a realidade.

Um engenheiro químico conta que, em certo momento, ordenaram que lavassem urgentemente uma casa de uma aldeia vazia, para celebração de um casamento. Trouxeram convidados, música, “noivos de verdade”.

Eles já moravam em outro lugar, tinham sido evacuados, mas os convenceram a vir filmar aqui uma cena para a posteridade. A propaganda funcionava. A fábrica de sonhos defendia os nossos mitos. Poderíamos sobreviver em qualquer lugar, até numa terra morta.

Embora a falta de transparência do governo esteja presente em quase todos os relatos, nesse capítulo percebemos também o sentimento de culpa que muitos sobreviventes carregam. Na visão de alguns, acreditar no que o Partido dizia, também foi uma escolha. Neste trecho, aquela mesma professora que relatou a discussão entre duas amigas, uma com uma fé inabalável no Partido e a outra com dúvidas, desabafa em seguida:

Não foi apenas o poder que nos enganou, nós mesmo não queríamos saber a verdade. E ela estava lá. No fundo do nosso subconsciente. Claro que agora não queremos confessar, é mais agradável repreender Gorbátchov. Acusar os comunistas. Eles são os culpados, e nós, os bonzinhos. As vítimas.

Uma das vozes que traz de maneira mais forte esse compartilhamento da culpa é a de Zóia Bruk, inspetora do Serviço para Proteção da Natureza. Ela começa a refletir sobre os papéis que a comissão, da qual fazia parte, assinou para a construção de um complexo de criação de gado em uma das aldeias “limpas”:

No final das contas, encontrei uma justificativa para mim mesma: o problema da limpeza da forragem não é da competência do inspetor de proteção da natureza. Eu sou de pouca importância. O que posso fazer?

Cada um encontrava uma justificativa. Alguma explicação. Eu fiz a experiência comigo mesma. E, numa palavra, compreendi que na vida as coisas mais terríveis ocorrem em silêncio e de forma natural.

Esse depoimento é um dos mais chocantes desse trecho, porque nos coloca para pensar: quantas vezes, embalados pelo silêncio e pela aparência de naturalidade das coisas, deixamos fatos graves passarem? Elegemos constantemente nossos heróis e vilões, para nos livrarmos de responsabilidades e simplificarmos o mundo, mas a verdade é que nenhum grande bem ou grande mal se faz sozinho.

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