Na última quinta-feira, compartilhamos, em nossa página no Facebook, uma notícia sobre a escritora britânica Ann Morgan, que se desafiou a ler, em um ano, um livro de cada país do mundo. No dia seguinte, tiveram início os Jogos Olímpicos, competição esportiva entre nações, famosa por instigar o orgulho de pertencer. Tudo isso me fez pensar sobre minha relação com a literatura brasileira.

Me peguei imaginando quais títulos eu indicaria a Morgan, para que ela visse o crème de la crème de nossa produção literária, ou quais escritores compatriotas despontariam no meu quadro de medalhas. Vários nomes me passaram pela cabeça, mas também percebi, com um misto de vergonha e tristeza, uma defasagem de representantes brasileiros contemporâneos em minha lista de achados e lidos.

Indicar clássicos brasileiros não é difícil. Quem lê meus posts por aqui sabe da minha paixão por Machado de Assis, por exemplo. A biblioteca da minha escola era predominantemente de literatura nacional. Quem se lembra da Série Bom Livro, da Editora Ática? Ela fez parte da minha adolescência e construiu minhas primeiras memórias de leituras de alta qualidade. Desde os romances água com (muito!) açúcar de Joaquim Manuel de Almeida e José de Alencar até as incomparáveis obras machadianas. Eu, que estava acostumada à estrutura narrativa tradicional, com heróis e anti-heróis, de repente sou apresentada ao defunto autor, de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Imaginem meu encantamento diante da originalidade desse escritor:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas Memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.

Já no ensino médio, lembro-me com muito carinho de quando li Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e escrevi uma resenha que guardo ainda hoje. Trabalho escolar que nem parecia obrigação, tamanha a satisfação que senti em analisar o texto de Ramos. Descobrir a engenhosidade por trás da construção de cada personagem foi um daqueles momentos decisivos no meu caso de amor com a literatura. Recordo que fiquei semanas falando sobre Baleia e o quão genial era, em uma história com aquele contexto de miséria, ter uma personagem que era uma cadela, cujo nome em nada combinava com seu aspecto físico e que era mais humana que o restante dos personagens:

O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria a carícia excessiva. O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne.

Passada essa minha fase de clássicos, fiquei um bom tempo sem incluir escritores brasileiros nas minhas leituras, até o ano de 2012, quando conheci um autor que já é habitué aqui no blog, de tanto que eu e Tatá gostamos dele: Daniel Galera. Barba Ensopada de Sangue teve um papel importantíssimo na minha jornada literária: despertou meu interesse adormecido pela literatura brasileira, além de me tornar mais atenta à produção nacional contemporânea. Em seguida, foi a vez de me encantar por Vanessa Barbara. Noites de Alface é um livro que já apareceu em uma lista aqui no blog e, em breve, vai ganhar resenha. A autora, por sinal, é outra que tem lugar garantido no Achados & Lidos.

Desde que começamos o blog, tenho me cobrado para aumentar meu repertório brasileiro. E só tenho tido gratas surpresas. Li Raduan Nassar e Milton Hatoum com um sentimento de arrependimento por ter demorado tanto para conhecê-los.

Embora eu seja uma grande defensora da experiência multicultural na literatura, fico muito feliz quando me deparo com um escritor brasileiro de qualidade. Além do orgulho, penso no quanto sou privilegiada por poder ler uma obra-prima em minha língua materna. Isso faz toda a diferença. Afinal, há alguns escritores que beiram a impossibilidade da tradução. Clarice Lispector é um bom exemplo. Imagino o trabalho árduo que Benjamin Moser, grande estudioso da obra da escritora, teve ao traduzi-la para o inglês, que tem uma estrutura tão diferente do nosso português. Como colocar em outra língua um trecho como este de A Hora da Estrela, cheio de significados e malabarismos com o idioma:

É claro que, como todo escritor, tenho a sensação de usar termos suculentos: conheço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência.

Só nos resta comemorar por Lispector ter escrito toda sua obra em português. Ela e tanto outros formam uma seleção verde e amarela que, sem dúvida, merece ouro. Como bem anunciou Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro:

O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progesso autossustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.

Um pouco de otimismo nunca faz mal, não é? Estou certa de que minha lista de excelentes achados literários brasileiros ainda vai crescer bastante. E claro, aceito sugestões aqui nos comentários!

Mariane Domingos

Mariane Domingos

Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
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