Inspirada pelo último texto da Mari para o Divã, decidi que devia apostar em um nome ainda não citado pelo Achados & Lidos para a resenha desta semana. Olhando para as compras na Festa do Livro da USP (assunto para outro post), escolhi As Avós, de Doris Lessing.

O estilo de Lessing, uma das seis mulheres a levar o Prêmio Nobel de Literatura nas últimas duas décadas, me surpreendeu. Conhecida por seu ativismo político e por seu linguajar afiado ao comentar acontecimentos mundanos, esperava um livro de linguagem forte e rascante, mas o que encontrei foi um tom comedido e, ao mesmo tempo, límpido, como neste trecho de apresentação dos personagens:

Dois belos homens vinham na frente, não jovens, mas apenas o despeito poderia dizer que eram de meia-idade. Um deles mancava. Em seguida duas mulheres tão bonitas quanto eles, de uns sessenta anos – mas ninguém nem sonharia em chamá-las de velhas. Numa mesa evidentemente conhecida deixaram sacolas, cangas e brinquedos, gente serena e radiante, como são os que sabem usar o sol.

O livro, que mais do que um romance é uma pequena novela, narra a história de duas amigas de infância, Lil e Roz. O encontro, ainda no jardim de infância, forjou uma amizade que teria consequências sobre os caminhos tomados pelas duas ao longo de toda a vida.  

Entre decisões sobre estudos, casamento e filhos, o que as guia é a necessidade de estar perto uma da outra. Harold, o marido de Roz, é o primeiro a perceber – e se incomodar – com essa relação de dependência. Ele logo percebe que ocupa um lugar secundário na vida da esposa e, ao confrontá-la com esse fato, não vê outra saída senão se mudar.

Roz e Lil continuam a morar no mesmo balneário rico, na fronteira entre uma calma baía de águas rasas e o mar aberto e turbulento que desponta logo depois dos rochedos. Esse duplo estado da mesma matéria parece representar as personalidades das duas amigas.

A turbulência sempre parte de Roz, que por impulso toma as decisões, entre elas o início de uma espécie de romance proibido. Ela é a protagonista, como logo os filhos das duas, Tom e Ian, vão descobrir. Lil, já mais aconchegada na baía de seus acontecimentos, apenas segue o fluxo e, como um espelho, reflete os rumos traçados por sua companheira de vida.

O arco narrativo que Lessing consegue traçar em poucas páginas é impressionante. São quase 60 anos do início ao fim de As Avós, mas nunca há a sensação de pressa. Os parágrafos resumem grandes períodos, mas de forma quase poética. Não sentimos falta de mais explicações. Ian sofre um acidente e é confortado por sua esposa, Hannah. A recuperação é assim descrita:

Uma boa palavra, uma palavra certeira. Ela convenceu Ian a voltar-se para ela e, então, rapidamente, a levantar-se, a dar os passos prescritos de um lado para o outro do quarto, depois na varanda e, logo, na rua e na praia. Entretanto Ian nunca mais poderia surfar. Estava manco para sempre.  

Muito do sucesso nesse processo se deve aos fortes personagens construídos por Lessing. Embora o título do livro enfatize Lil e Roz como avós, é no papel de mãe dos dois jovens rapazes que o caráter delas se estrutura. É sob essa condição que elas vão tomar decisões incontornáveis no futuro.

O fim se torna bastante previsível ainda antes da metade do livro, mas isso não é um problema. Lessing sabe nos conquistar aos poucos, como uma onda fraca, que chega sem fazer barulho, mas quando vemos já nos levou chinelos, toalhas e demais objetos espalhados na areia da praia. Ela chega devagar, mas tem o poder de levar tudo.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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