A Máquina de Fazer Espanhóis chegou ao fim e nos despedir não está fácil! A angústia, esse sentimento tão humano, dominou António à medida que ele ia perdendo suas capacidades físicas. Entre a culpa e o desespero pela proximidade da morte, ele também faz uma bonita descoberta sobre a amizade. Gostamos muito do livro de Valter Hugo Mãe e de todas as reflexões que a leitura nos incitou a fazer! Na próxima semana, convidamos nossos leitores a compartilhar conosco sua opinião sobre o livro!

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Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Desde que entrou no Lar da Feliz Idade, António conhecia seu destino – a transferência para a ala esquerda, próxima do cemitério, próxima da morte. Por mais que ele tentasse se convencer de que desejava o fim, enfrentar essa realidade não foi uma experiência simples.

Com a perda de Laura, no início da história, a morte lhe parece a única solução possível. No entanto, à medida que passam os dias, outras pessoas vão preenchendo sua existência e, como bem diz o título do penúltimo capítulo, António “precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia”.

Sempre muito dedicado à família, ele descobre na ausência de Laura a presença alheia. Os amigos que faz no Feliz Idade lhe apaziguam com a vida:

os outros, américo, justificam suficientemente a vida, e eu nunca o diria. esgotei sempre tudo na laura e nos miúdos. esgotei tudo demasiado perto de mim, e poderia ter ido mais longe.

No entanto, perder esses amigos, um após o outro, é como reviver a despedida de Laura. Nessa última parte, chega a vez do senhor Pereira. O luto derruba António mais uma vez. Seu corpo começa a enfrentar uma rendição lenta, em que os órgãos param, um a um, de obedecer aos comandos do cérebro. A temida ala esquerda, mais especificamente o quarto do assustador Medeiros, torna-se sua nova casa.

Ao longo do romance, Valter Hugo Mãe constrói uma bela metáfora que reúne três elementos bastante presentes na narrativa: os mistérios que envolvem o lar, a extinção da metafísica como significado da morte e os efeitos nocivos do salazarismo. O quarto de Medeiros é a concretização de um, ou melhor, de vários pesadelos.

Primeiro, a máquina de fazer espanhóis. A ideia surrealista de um aparelho que tira a identidade portuguesa das pessoas é uma referência clara ao período salazarista. Na visão de Hugo Mãe, a principal cicatriz deixada pela ditadura foi o sentimento de inferioridade incutido no povo português. Salazar era quem pensava pelos cidadãos e isso os levou à mediocridade.

O primeiro a experimentar a destruição causada pela tal máquina foi o Esteves, personagem que já representava, a partir de sua anedota com Fernando Pessoa e o poema Tabacaria, a ideia de que a alma é o elemento que legitima a existência humana. A máquina que roubava metafísica levou Esteves à morte. Os pássaros que bicavam António em seus pesadelos também lhe arrancavam a alma. O fim da vida é mais do que o corpo perecendo. É, na verdade, a metafísica se esvaindo.

Outro aspecto bem encaixado na história do quarto tenebroso do Medeiros é o suspense que assola o Lar da Feliz Idade. Lá, tanto Enrique quanto Esteves enfrentaram seus piores pesadelos – o roubo da identidade portuguesa e da metafísica. As cenas desses momentos, embora pareçam delírios, guardam certos detalhes que levam à suspeita de que na ilusão há um quê de realidade. Os homens que entram no quarto, no meio da noite, com “um aparato estranho de cabos e mangueiras” não remetem apenas a personagens de um sonho ruim. Não seriam eles funcionários do lar tentando acelerar o fim dos internos que já representavam prejuízo? A agonia de que há sempre algozes à espreita é outra herança do salazarismo, especialmente para António.

Hugo Mãe domina essa mistura do delírio com a realidade para construir uma narrativa aberta a interpretações. Essa, aliás, é uma marca do escritor. Em sua participação recente no Fronteiras do Pensamento, ele afirmou não gostar do gênero policial, porque não aprecia histórias com finais definitivos. Para ele, é uma decepção percorrer páginas e páginas de dicas, suspenses, pontas soltas, para, no final, ter um narrador encaixando todo o quebra-cabeça por ele. Segundo Hugo Mãe, o desfecho é um prazer que deve caber ao leitor.

A Máquina de Fazer Espanhóis é um romance desse tipo. Entre a lucidez e o delírio que acomete António ao fim da vida, questionamos vários dos acontecimentos relatados durante a narrativa. Ficamos sem saber, por exemplo, se António de fato atacou e, depois, matou Marta, a senhora para quem ele escrevia cartas de amor para substituir o marido ausente. Os episódios, chocantes para nós, leitores, podem ter sido confecção de uma mente assolada por sentimentos conflitantes.

O personagem desenvolvido por Valter Hugo Mãe sempre foi ambíguo, até mesmo nas emoções que ele nos despertou ao longo da leitura. Os primeiros capítulos são marcados por uma profunda compaixão pelo senhor que perdera a esposa de toda uma vida. Ao embarcar em reminiscências do passado junto com António, porém, descobrimos uma faceta bem menos lisonjeira do senhor internado no Lar da Feliz Idade.

Sua falta de coragem para enfrentar a pide e o salazarismo, sua rendição aos policiais que lhe bateram à porta procurando o jovem combatente contra o regime, seriam uma sombra que perseguiria António por toda sua jornada. Ele gostaria de ser capaz de esquecer a culpa e a angústia que o dominam, mas sabe, ao mesmo tempo, que o esquecimento significa a perda da parte boa da memória: a saudade.

António, que não era capaz de amar a muitas pessoas e nem se considerava um cidadão exemplar, tinha dentro de si o mais profundo afeto por sua família e, especialmente, por Laura. Ao observar as memórias se apagando e o corpo perdendo autonomia, António se debate porque sabe que, a mais essa provação, ele não poderia suportar.

naquela altura eu tinha de gritar. precisava de dizer que me arrependia, que não queria acabar sem metafísica, que me enterrassem com a metafísica e português. (…) porque eu precisava morrer consciente, recordando cada minuto do tempo com a minha laura, recordando como a vida se fizera em torno dela e da família, como me terá parecido que assim devia de ser um homem, como assim me havia bastado a cidadania. assente sobretudo no amor. não me tirem a consciência do amor e da sua perda.

O Lar da Feliz Idade e António, com todas as suas ambiguidades, deixarão saudade. A obra de Hugo Mãe estimula um sentimento cada vez mais raro e mais necessário no mundo – a empatia. A sensibilidade do escritor, que tão jovem conseguiu expressar com tamanha propriedade a velhice, é admirável. Com quantos Antónios já nos deparamos na vida? Quantas vezes já fomos Elisas, Bernardos, Américos, Silvas da Europa?

Em A Máquina de Fazer Espanhóis, António enfrenta seu principal algoz – a consciência, que, como ele mesmo diz, é “dos químicos mais corrosivos, ou dos melhores detergentes, se quiserem”. O leitor é convidado a passar pelo mesmo processo, a sentir um nó na garganta, um incômodo. A leitura terminou, mas não acabou. Temos a certeza de que a escrita de Hugo Mãe ainda nos acompanhará por um bom tempo. E é por isso que a boa literatura é apaixonante.  

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