[Resenha] História de Quem Foge e de Quem Fica

O terceiro volume da tetralogia napolitana de Elena Ferrante, publicado no Brasil pelo selo Biblioteca Azul, não só mantém o vigor narrativo dos dois primeiros livros como amplia fronteiras e aprofunda relações [leia também a resenha de A Amiga Genial e História do Novo Sobrenome]. A amizade entre Elena Greco e Rafaella Cerullo cede espaço, como tema central, para a crescente tensão social na Itália das décadas de 60 e 70. A desigualdade, pano de fundo sempre presente nas histórias do bairro, ganha protagonismo quando Elena “foge” e Lila fica em Nápoles.

Elena Greco, a narradora, sempre soube que precisava deixar o bairro e via como válvula de escape a educação. Com autodisciplina, persistência e o apoio velado da mãe ( apesar dos conflitos entre as duas), consegue se formar, escrever e publicar um livro, o que lhe abre as portas da academia, dos jornais e até de uma proeminente família milanesa, os Airota.

Ao longo do livro, porém, fica claro o confronto entre a idealização que ela fazia do que seria a vida fora do bairro e a realidade. Há um abismo intransponível que a separa de um mundo ao qual ela não pertence porque não nasceu nele, porque falou dialeto na infância, porque os costumes das mulheres do bairro são diferentes. Toda a bagagem cultural que ela adquiriu ao longo dos anos de estudo ainda não a fazem se sentir como parte de outra camada social.

Mais do que tudo, Elena, em sua ânsia de se sentir adequada, busca o tempo todo um papel que não lhe serve. Tenta imitar os trejeitos, os vestidos, o modo de se arrumar de Adele, mãe de seu marido, mas sem desenvolver a confiança necessária para ocupar o mesmo espaço que sua sogra.

Transformar. Esse era um verbo que sempre obcecara, mas me dei conta disso pela primeira vez somente naquela ocasião. Eu queria me transformar, embora nunca tenha sabido em quê. E tinha me transformado, isso era certo, mas sem um objeto, sem uma verdadeira paixão, sem uma ambição determinada. Tinha querido me transformar em algo – aí está o ponto – só porque temia que Lila se transformasse em sabe-se lá quem, e eu ficasse para trás. Minha transformação era uma transformação dentro de seu rastro. Precisava recomeçar a me transformar, mas para mim, como adulta, fora dela.

Nas entrelinhas, Ferrante evidencia que o dinheiro tem muito poder, mas há um aspecto da desigualdade que é ainda mais profundo e mais difícil de alterar. Se o dinheiro, como diz um dos personagens a certa altura, “inventa panoramas, as situações, a vida das pessoas”, o lugar onde cada indivíduo nasceu na Itália determina um certo status social que nem a riqueza é capaz de alterar. É esse pertencimento que Elena não consegue experimentar.

Os hábitos arrogantes de seu marido pouco ajudam. Presa em um casamento infeliz, sob o peso dos cuidados com a casa e as filhas, Elena começa a questionar suas conquistas e a colocar na linha de frente de ataque, mais uma vez, sua relação de dependência de Lila. O trecho em que ela se enxerga como uma pessoa medíocre é daqueles que a gente rabisca, grifa, marca a orelha do livro, só para achar sempre que precisar de conforto.

Acabara me somando a ela e me sentia mutilada assim que me subtraía. Sem Lila, nem sequer uma ideia. Sem o apoio de seus pensamentos, nenhum pensamento em que pudesse confiar. Nenhuma imagem. Devia me aceitar fora dela. O núcleo era esse. Aceitar que eu era uma pessoa mediana.

Já adultas, as duas se distanciaram, ainda que sigam presentes uma na outra. Lila, que ficou, começa o terceiro livro em situação deplorável, vivendo em um bairro pobre de Nápoles, em um casebre que ela sustenta ao lado de Enzo com longas horas de trabalho na fábrica de embutidos de Soccavo. Ao relatar a vida na fábrica, a crítica social de Ferrante se torna mais aguda, com o ambiente insalubre, o machismo que permeia as relações.  

Ao tratar do movimento operário e do envolvimento da pequena burguesia com essas correntes, Ferrante também expõe as contradições sempre presentes no discurso daqueles que querem saber melhor como é estar no lugar do outro. Ao analisar o envolvimento de Nadia, a filha de uma antiga de professora de Elena, com os comunistas, Lila reflete:

Apenas três palavras. Lila compreendeu que não era uma frase vazia, que Nadia estava falando sério, que mesmo se Bruno Soccavo demitisse todo o pessoal, ela, com aquela voz licorosa, teria dado a mesma resposta insensata. Afirmava estar a serviço dos operários e, enquanto isso, de seu quarto dentro de uma casa forrava de livros e com vista para o mar, queria controlar você, queria lhe dizer o que você deve fazer com o seu trabalho, decidia em seu lugar, tinha uma solução pronta mesmo que você fosse para o olho da rua.

Nem mesmo Lila, porém, consegue mais lidar com a situação. A ajuda de Elena, que volta ao bairro pouco antes de se casar, é essencial para virar a vida dela, embora nenhuma das duas personagens pareça se dar conta da importância desse socorro. Degrau a degrau, ela e Enzo conseguem melhorar de vida ao se especializarem na implementação de sistema de informática nas fábricas. O problema é que Lila ficou no bairro e, portanto, não consegue se desvencilhar das antigas rivalidades familiares, especialmente com os Solara, para quem ela decide ir trabalhar, não sabemos ainda com qual finalidade.

A epifania do terceiro livro da saga, porém, vem mesmo perto do fim. Estimulada a voltar a escrever, Elena repensa como todos os personagens femininos importantes da literatura mundial são “autômatos de mulheres fabricados por homens”. Os exemplos abundam, de Madame Bovary por Gustav Flaubert e a Anna Kariênina por Liev Tolstoi. “De nosso não havia nada, o pouco que surgia logo se tornava matéria para a manufatura deles”, reflete Elena, um pensamento que fica ecoando por vários minutos. 

Não sabemos ao certo quem é Elena Ferrante, mas o forte retrato de amizade, lealdade, distâncias e competição presentes na tetralogia napolitana sempre me fizeram acreditar que há uma essência feminina na gênese dos livros. O trecho em que a personagem principal faz essa reflexão foi daquelas que me fez abrir os olhos e pensar: está aqui a explicação para o apelo de Ferrante, por esse romance que nos arrebata como se nada tão forte sobre amizade tivesse sido escrito antes.

O pecado, no caso de A História de Quem Foge e de Quem Fica, é a revisão. Provavelmente pela pressa, o livro está coalhado de pequenos erros e há a impressão de que o cuidado com a tradução foi menos acentuado neste volume. Ao empregar expressões como “descascar um abacaxi”, que não combinam com todo o vocabulário e a intensidade das metáforas criadas por Ferrante, parecem fora de contexto.

Claro, nada disso realmente compromete o prazer da leitura desse livro fantástico. De novo, fechamos o livro mal podendo esperar para começar o próximo.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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1 Comentário

  1. Você não achou que essa loucura vivida por Elena com Nino mais pro final do livro desrespeitou totalmente o que havia sido construído para a personagem? Primeiro, Nino sempre foi uma pessoa terrível pelo modo como se comportou com todas as mulheres. Com Elena adolescente, abandonando Lila grávida de um filho q poderia muito bem ser dele, abandonando Silvia, traindo todas e inclusive Eleonora sem nenhum pudor… Como pode Elena ter se furtado de perceber isso e seguir o amando? O comportamento dela no final do terceiro livro é indigno, desrespeita a amiga e o que ela passou sendo abandonada à própria sorte (nem digo por sofrer do coração, isso acontece a todos nós, digo por ser abandonada miserável com um filho na barriga), e desrespeita a si mesma arrastando-se por alguém q aparece quando convém e sempre teve um comportamento nojento com absolutamente todas as mulheres com quem se relacionou. Especialmente nesse livro no qual há uma pegada feminista mais intensa, a ausência de sororidade me decepcionou demais. Enfim, estou muito decepcionada com a segunda metade do terceiro livro.

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