Já é quase Natal e não poderíamos comemorar a data de outro jeito a não ser com literatura! Escolhemos, para este Clube do Livro “express”, o conto Missa do Galo (Variações sobre o mesmo tema), da Lygia Fagundes Telles. O texto é, na verdade, uma releitura de um conto do Machado de Assis com o mesmo nome!

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Por Mariane Domingos e Tainara Machado

O conto Missa do Galo, de Lygia Fagundes Telles, é, como já diz o próprio título, uma variação do conto de Machado de Assis. Mas Lygia, como é do feitio de sua obra, entra mais fundo na história, revelando tensões, desconfortos e situações que no texto de Machado aparecem apenas como nuances.

No conto original, que se passa em 1861, um menino de 17 anos, abrigado na casa do marido de uma tia falecida, está prestes a retornar para o interior, mas decide ficar na cidade mais um pouco para assistir à Missa do Galo longe da “roça”, por acreditar que ali haverá mais pompa e gente para ser vista.

Enquanto espera o relógio se aproximar da meia-noite, fica na casa, lendo Os Três Mosqueteiros distraidamente. A casa é todo silêncio, já que o tio, Meneses, foi ao “teatro”, o que o rapaz logo descobre significar um encontro com suas amantes. A esposa, Conceição, e sua mãe também já foram para seus quartos, e a monotonia da noite só é quebrada pela surpreendente aparição de Conceição, em trajes de dormir.

Essa conversa curta e inesperada, na qual a mulher se revela mais bonita e interessante do que no dia a dia, ficará gravada na memória do jovem, que narra o conto.

Para dar substância a esse episódio aparentemente fortuito, Lygia Fagundes Telles muda o narrador, que agora apenas observa a conversa. A tensão que surge entre os dois, e que não se materializa porque o rapaz não é capaz de plenamente compreender as intenções da tia, ficam mais escancaradas.

Não entendo – o jovem dirá quando lembrar o encontro e a conversa com a senhora que vai aparecer daqui a pouco. Não entende? Quero entender por que ele não entende o que me parece transparente mas não estou tão segura assim dessa transparência.

É quase impossível saborear o conto de Lygia sem ler o de Machado antes. O que é descrito apenas de passagem no primeiro – a situação conjugal, o papel da sogra que tudo observa, o envelhecimento dos móveis – ganha mais graça e mais contexto no segundo. Sabemos que a mãe de Conceição aquiesce às escapadas do sogro, mas não tolera que ele o faça justamente na noite de Natal.

Só não há mais detalhes do que se passa na cabeça de Conceição e do menino. Assim como em Dom Casmurro, o objetivo parece ser deixar as pontas soltas para o leitor. Será que Conceição, que logo depois de ficar viúva se casaria com o escrevente do marido, levantou da cama e foi de roupão até a sala com o objetivo de seduzir o menino?

Queria ser exata e só encontro imprecisão, mas sei que tudo deve ser feito assim mesmo, dentro das regras embutidas no jogo.

O que vemos de concreto é uma releitura dos personagens. Conceição aparece ainda mais forte e dona de si no conto de Lygia. O fascínio que o jovem revela, no conto de Machado, parece ser resultado de um domínio calculado, na versão da autora:

A Dona Conceição, imagine! Tão apaziguada (ou insignificante?) durante o dia, quase invisível no seu jeito de ir e vir pela casa. E agora ocupando todo o espaço, como um navio, a mulher era um navio.

Outro personagem que ganha destaque na releitura de Lygia é a Madrinha, mãe de Conceição. Enquanto Machado a posiciona no enredo como uma presença passiva, que dorme no quarto ao lado enquanto tudo acontece, na narrativa da escritora, ela ganha voz e demonstra um olhar muito mais perspicaz de tudo que acontece ao seu redor:

A Madrinha (outra de sono leve) já está acordada com sua asma e seu medo, tem sempre uma velha que finge que dorme enquanto os outros falam baixinho. É fácil dizer. Durma, queridinha. Mas dormir quando o sono é irmão da morte?!

Não seria exagero dizer que temos a presença feminina realçada na obra de Lygia. A escritora poderia até ter ido mais longe reescrevendo o conto na visão da mulher. Mas Lygia não é óbvia e tampouco gostaria de calar os silêncios da obra de Machado. Há uma frase em que ela resume, no comportamento do jovem, o que é esse trabalho de revisitar um texto fechado no formato, posto que já foi publicado, mas não no conteúdo:

As omissões. Os silêncios tão mais importantes – vertigens de altura nas quais se teria perdido, não fosse ela vir em auxílio, puxando-o pela mão.

Nos dois contos, temos o não-dito conduzindo a narrativa. A imaginação é convidada a fazer suposições e preencher as entrelinhas. Na versão de Lygia, fica a impressão de que o tempo transcorrido até a meia-noite passa ainda mais rápido. O diálogo é poderoso e não precisa ser explícito para se fazer presente. Em pouco mais de cinco páginas, horas se passam e todos somos surpreendidos quando os ponteiros se juntam.

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