[Divã] O que você está lendo?

Livro de cabeceira é uma expressão que não funciona para mim. O que tenho mesmo é uma biblioteca de cabeceira. Diariamente, convivo com uma dezena de personagens, viajo de um século a outro e transito entre as mais diferentes realidades.

No último mês, por exemplo, minhas manhãs foram na companhia de Mia Couto e seus ensaios sobre as belezas e as mazelas da África. Pela tarde, eu mergulhava numa trama de assassinato narrada por um feto irreverente. À noite, me transportava para o século XIX para encontrar Os Buddenbrook.

Ler vários livros ao mesmo tempo é um hábito que me acompanha há anos. As causas desse comportamento vão desde explicações psicológicas, como estado de espírito e ansiedade literária, até aspectos mais práticos, como impossibilidade de carregar calhamaços por aí.

O ponto inicial da simultaneidade de leituras é a dificuldade de pegar na estante um só título. Vivo no eterno paradoxo do amor pela variedade e da angústia pela escolha. Quando viajo, nunca levo um só romance, não importa se vou ficar um fim de semana apenas. Meu maior receio é: e se eu não gostar da história? Uma segunda ou terceira opções são fundamentais para apaziguar meu espírito. Em seu ensaio Como se deve ler um livro?, Virginia Woolf, descreveu brilhantemente esse sentimento:

Não devemos desperdiçar nossas forças, com incompetência e inépcia, esguichando água por metade da casa a fim de molhar uma roseira apenas; devemos discipliná-las, com rigor e energia, no ponto certo. Essa pode ser uma das primeiras dificuldades com que nos defrontamos numa biblioteca. Qual será o “ponto certo”? Pode bem ser que lá não pareça haver senão acúmulo, senão amontoamento confuso. Poemas e romances, histórias e memórias, dicionários e publicações do governo, livros escritos em todas as línguas por homens e mulheres de todas as raças, idades e temperamentos acotovelam-se nas prateleiras. E do lado de fora o burro zurra, as mulheres tagarelam no poço, os potros galopam pelos campos. Por onde vamos começar? Como vamos pôr ordem nesse caos multitudinário e assim extrair do que lemos o prazer mais amplo e profundo?

Procrastinar a escolha, elegendo mais de um título por vez, é evitar a decepção com a leitura. Assim como assistir a um filme ou ouvir uma música, o prazer naquilo que estamos lendo está diretamente ligado ao nosso estado de espírito. Livros são companhias e, dependendo do momento de vida em que estamos, eles podem ser mais ou menos marcantes. Tenho a sensação de que, se eu estiver lendo vários livros, algum deles, certamente, irá dizer o que estou precisando ouvir. Por isso, quanto mais diferentes os estilos, melhor. Misturo romances, contos, ensaios, poesia e sempre encontro alento e compreensão na literatura. Em outro texto de Woolf, intitulado O Leitor Comum, ela diz:

O leitor comum, como sugere o dr. Johnson, difere do erudito e do crítico. Não é tão instruído, nem foi a natureza tão generosa ao dotá-lo. Ele lê por prazer, não para transmitir conhecimentos ou corrigir opiniões alheias. Acima de tudo, e guiado pelo instinto de criar para si, com base em eventuais fragmentos aos quais venha a aproximar-se, algum tipo de todo – o retrato de um homem, um esboço de uma época, uma teoria sobre a arte da escrita.

É fundamental que esse prazer pela leitura não se confunda com um desespero pela quantidade. Há uma dura verdade na vida, que é preciso encarar desde cedo: jamais teremos tempo para ler todos os livros essenciais. Por mais listas que montemos, nosso paginômetro sempre carecerá de algum exemplar importante.

Ler vários títulos simultaneamente não deve ser resultado apenas de uma ansiedade literária. Digo “apenas”, porque é claro que ela sempre vai existir. Quem nunca correu para começar um lançamento ou um clássico “tem-que-ler”, mesmo com outra leitura já iniciada, somente para amenizar aquela sensação de estar para trás? Confesso que amo listas, mas às vezes elas me deixam depressiva. Se você coloca em sua mesa de cabeceira vários exemplares somente para aumentar a pilha de lidos, é hora de repensar a estratégia. Listas servem para aumentar as opções e não para instigar o desespero da escolha.

Outro grande perigo desse hábito é começar vários títulos e não terminar nenhum. Quando a motivação é errada, a chance de isso acontecer é grande. Uma tática que funciona comigo é dividir as leituras por horários. Nada inflexível, claro, mas ajuda bastante na organização. Ainda assim, não estamos livres de termos uma paixão avassaladora por um título e abandonarmos temporariamente os demais. Administrar vários relacionamentos não é fácil.

Impossível afirmar que leituras simultâneas são mais produtivas. Isso depende do perfil do leitor. O que posso dizer, com certeza, é que essa prática e o imperativo de ter sempre um livro por perto devem vir, antes de tudo, da inquietação por conhecer o alheio. Mia Couto, em seu ensaio Quebrar Armadilhas, resultado de uma palestra que fez em Campinas, explicou essa necessidade:

Na realidade, de pouco vale a leitura se ela não nos fizer transitar de vidas. De pouco vale escrever ou ler se não nos deixarmos dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros corpos, outras vozes.

A mesa de cabeceira lotada de livros é como um bilhete de entrada para esse “transitar de vidas”. É, diariamente, poder conviver com a diversidade do mundo.

Mariane Domingos

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Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
Mariane Domingos

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2 Comentários

  1. Mariane, gostei dos seus argumentos. Muito bom!
    Eus também me acumulo de várias leituras, entre livros , revistas, catálogos de arte, apostilas de cursos que participei e alguns artigos de epublicações digitais. Ufa!
    Mas minhas métrica de leitura são livros.

    • Mariane Domingos

      19 de fevereiro de 2017 at 19:14

      Obrigada, Ricardo! Bom saber que há mais leitores que compartilham esse hábito por aí, rs. Nem incluí as revistas no texto, mas bem lembrado: elas são uma parte importante das minhas leituras diárias! “Bibliotecas de cabeceira” trazem a ótima sensação de ter a literatura sempre por perto! 🙂

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