Foram poucas páginas de leitura, mas já deu pra perceber que O Amor dos Homens Avulsos promete uma prosa marcante e um narrador daqueles que realmente sabem contar uma história. E você, qual foi sua primeira impressão? Para a próxima semana, avançamos até o capítulo 22, na página 44.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Como acontece na maioria dos livros, o começo de O Amor dos Homens Avulsos é dedicado a ambientar o leitor no espaço e no tempo. Victor Heringer não dispensa essa fórmula, mas dá um toque de originalidade à narrativa logo na primeira página, com um “informe meteorológico”:

A temperatura deste romance está sempre acima dos 31ºC.
Umidade relativa do ar: jamais abaixo dos 59%.
Ventos: nunca ultrapassam os 6km/h, em nenhuma direção.

O mar está muito longe deste livro.

Todas essas descrições correspondem perfeitamente às condições climáticas do cenário principal do romance: o bairro do Queím, um subúrbio carioca. Mas basta conhecer um pouco os personagens para perceber que esse informe irá bem além de uma abordagem geográfica.

Esta será uma narrativa de memórias, portanto a “temperatura”, a “umidade” e os “ventos” significam mais que manifestações da natureza. Nosso palpite é que elas estão ligadas aos efeitos das lembranças no estado de espírito do narrador ou ainda à influência do passado no seu destino.  

As memórias começam ainda na infância. É interessante como Heringer mistura a perspectiva infantil, por vezes ingênua, à visão mais madura de um narrador já na fase adulta:

Nós nem imaginávamos a crise que perturbava há meses o casamento dos pais. Nem sabíamos quem governava o país. Vivíamos sob a esquisita ditadura da infância: víamos sem enxergar, ouvíamos sem entender, falávamos e não éramos levados a sério. Mas fomos felizes durante o regime. O tecido de nossas vidinhas era escuro e nos escondia completamente, burca sem olhos.

Nesse ritmo, vamos conhecendo os personagens da história. Maria Aína é a vizinha que cuidava dele e da irmã Joana. A mãe ainda é uma figura elusiva, sem presença física; sabemos apenas que ela aparenta viver em um casamento conturbado. O pai também é introduzido à história já na tarde de verão que abre o livro. Ele é o responsável por trazer para casa o menino Cosme, ponto de partida para a trama.

É grande o impacto que esse personagem tem sobre o narrador. Ele relata essa primeira impressão sem nos poupar da virulência de sentimentos que o encontro lhe causou:

Meu instinto inicial foi odiá-lo. Queria furar seus olhos, fazê-lo desaparecer da face do planeta. Sei lá por quê. O ódio não tem razão nem propósito. O amor tem propósito, mas o ódio não.

Por esse trecho, já notamos por que Heringer é reconhecido pela sensibilidade de sua escrita. Os sentimentos irão, certamente, permear toda sua prosa, mostrando que, antes de resgatar fatos, a memória recupera emoções.

O ódio a Cosme parece denotar uma primeira sensação de estranheza, de oposição ao “diferente”. Há na cena uma tensão social que a ingenuidade do garoto ainda não compreende de todo: a descrição de Cosme é de um menino acuado e o primeiro contraste a que o narrador recorre é o do tom de pele: enquanto ele é “branco-esverdeado”, Cosme tem a cor de café misturado com leite. Quando a noite cai, o menino vai dormir no quarto de empregadas e, premido pelo medo, foge para a antiga senzala do bairro, que antes era uma fazenda.

A questão racial, aparentemente, será central para O Amor dos Homens Avulsos, mas a impressão que temos é que o assunto será desenvolvido com sutileza, do particular para o geral. Heringer parece ter o dom de captar o íntimo e, a partir dele, explicar o público. Seu estilo também se sobressai logo nas primeiras páginas. Ao alternar passado e presente em sua narrativa, o autor migra de descrições coloquiais e infantis do entorno dos personagens para reflexões profundas sobre sentimentos, como nos dois parágrafos destacados acima.

Outro aspecto interessante dessa primeira leitura é o retorno crítico que o leitor faz ao local onde nasceu. As descrições que apontam as transformações do bairro de sua infância são reflexo não apenas de um comportamento nostálgico, mas também de uma postura crítica em relação à evolução (ou involução) daquelas paisagens. O processo de gentrificação, no qual bairros simples são de repente alçados à moda por empreendimentos imobiliários arrogantes, parece ser mais um tema que terá espaço no romance:

Esta cidade sofre de uma febre que tempos em tempos causa essas alucinações de belepóque. Bota abaixo, vamos começar tudo de novo! É o parasita modernizador, a malária de Miami, que antes foi malária de Paris.

Não importa o colonizador em voga, o que sabemos por enquanto é que o calor e a umidade do bairro de Queím não cedem nunca. Como o clima ditará a relação entre Cosme e o narrador? É o que esperamos ler na próxima semana! Estão gostando do livro? Deixem suas impressões aqui nos comentários!

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