Nas últimas páginas, Camilo percorreu os dias finais de Cosme e descreveu, enfim, como foi o assassinato de seu amigo. Ao buscar essas memórias, o personagem também é tomado por uma sede de vingança que o leva a imaginar um crime cruel contra Renato, o neto do assassino de Cosmim, em um trecho em que a escolha pelo amor ou pelo ódio chegou ao seu apogeu. Na próxima semana, encerramos o livro! Foi uma leitura rápida, mas intensa!

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Detalhes do assassinato de Cosme são revelados à medida que o narrador trava uma luta interior para decidir o desfecho de sua relação com Renato, o neto do assassino. Na fronteira entre a ternura e o ódio, seus sentimentos se confundem e suas ações ameaçam ir de um extremo a outro – do carinho de um abraço à violência de um assassinato.

A morte repentina e brutal de Cosmim deixa marcas indeléveis em Camilo. Ao relembrar cada passo que levou ao dia fatídico, desde o momento em que o assassino flagra a intimidade do casal até o enterro que atraiu centenas de pessoas superficialmente comovidas, o narrador justifica como o crime o abateu para a vida toda:

O assassinato tomou domínio de mim para o resto da vida. Fui colonizado.

O capítulo em que Camilo narra a morte de Cosmim é o mesmo em que ele imagina, com riqueza de detalhes, sua mão empunhando uma faca e deferindo um golpe contra Renato, o neto do assassino do amor de sua vida. Na sua visão pessimista do mundo, não há como a história terminar de uma maneira bonita – “este planeta está começado na lama e vai terminar na lama”.

O garoto é o mais próximo que ele pode chegar do assassino. A questão da herança pelos laços sanguíneos aparece em uma reflexão que Camilo faz não sobre Renato, mas sobre si mesmo e o pai, ao pensar nas vítimas do médico no período da ditadura:

Acho que não me culpariam, não me odiariam por herança, mas uma coisa é certa: no meu sangue tem o meu pai.

Nesse momento, ele acredita ser inevitável que Renato carregue um pouco que seja do algoz de Cosme. Essa conclusão o deixa à beira de uma decisão sem volta: o assassinato do garoto. Ao construir essa cena na cabeça, ele percebe a irreversibilidade do ato:

O mundo só tem uma fronteira: do lado de cá, todos nós que já matamos alguém.

A morte de Cosme e o iminente assassinato de Renato são retratados lado a lado e formam o clímax da narrativa. Camilo tem que se decidir sobre qual lado da fronteira ele habitará. É o momento definitivo de sua vida. Não à toa, neste capítulo, a contagem progressiva é interrompida. Vamos do capítulo 66 ao 65.

Descrita como um fato consumado, a cena da morte de Renato é magistralmente narrada. Em um texto até um pouco cru, no qual se descreve como transbordariam as entranhas do menino, como a faca entraria em seu corpo, como ele se desfaria do corpo, estão todas as possibilidades de vingança acalentadas em mais de três décadas. A raiva está sempre à espreita.

Era o ódio boiando solto, recobrindo o ar inteiro. O ódio é um apêndice do mundo. É uma coisa que fica ao alcance de quem quiser pegar, deixar fermentar e fazer o que quiser. 

A reflexão sobre o ódio e a violência no mundo permeiam toda a narrativa, mas o que prevalece, no caso de Camilo, é o amor. Ao observar Renato vendo TV, Camilo apenas lhe abraça, pergunta se o menino não vai mais sumir.

Além da brutal morte de Cosme e do assassinato em pensamento do garoto, Heringer faz, neste trecho, uma reflexão sobre as possibilidades da humanidade, para que tudo acabe em morte. É uma marca do pessimismo inerente ao personagem, que parou de viver quando Cosme se foi, mas também uma análise sobre os hábitos comezinhos, as conquistas triviais e a banalidade da vida de uma raça capaz de tanto mal.

É a perpetração da espécie, peluda espécie dos que sabem que vão morrer, mas estudam para enfim conquistar aquele emprego médio de tribunal e consertar os dentes tortos e casa própria e filho ingrato e depois morrem, os imbecis!

Os imbecis continuam a viver, dia após dia, “reclamando da falta de amor”. É um mundo cão, de abandono e de pobreza, o do bairro do Queím. É um ambiente também marcado pela ausência completa do Estado.

A Justiça não faz parte das ponderações que levam Camilo a desistir do crime, e também não está presente no assassinato de Cosme. As investigações sobre a morte de um garoto de pouco mais de quinze anos, encontrado só de cueca, com mais de vinte facadas no tórax, são logo colocadas em segundo plano. A fuga de Adriano na mesma noite em que se comete o assassinato é tomada como uma coincidência, mais um homem do bairro que abandona a mulher grávida.

A vida, no Queím, tem mais de ódio do que de amor.

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