[Dicas da Imensidão] Semana #4

Em Ísis na Escuridão, terceiro conto de Dicas da Imensidão, de Margaret Atwood, acompanhamos, a partir da perspectiva de Richard, a trajetória de Selena, uma personagem misteriosa que encontra na poesia sua ascensão e sua decadência. Para a próxima semana, leremos o conto O Homem do Brejo, que vai até a página 104.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

A aura de mistério que envolve Selena aparece logo nos primeiros parágrafos do conto Ísis na Escuridão, quando Richard se questiona como ela foi parar ali, na sua mesa de trabalho. Em seguida, somos levados para uma viagem no tempo que retoma o início da história em comum entre os dois personagens.

Richard conheceu Selena em uma cafeteria, chamada Embaixada da Boêmia, que reunia aspirantes a poetas, músicos e intelectuais. Ambos eram jovens e cheios de projetos grandiosos relacionados à literatura. Era a época de negação do ambiente em que viviam e da esperança de um destino diferente do dos pais, por exemplo:

Naquela época, a poesia era rota de fuga para os jovens que queriam encontrar alguma saída para a burguesia alienada e ignorante e os grilhões de ganhar a vida de maneira respeitável, trabalhando em troca de um salário.

O texto um tanto irônico é resultado da perspectiva, já desgastada pelo tempo, de Richard. Como vemos à medida que a história avança, quando as responsabilidades apareceram, ele não conseguiu escapar muito da vida “alienada” que criticava. Mesmo assim, quando comparado com a jovem Selena, ele parecia ter um pouco mais de consciência a respeito desse futuro. Talvez porque ela, desde essa época, já demonstrava um talento bem superior ao dele, ou seja, sua esperança em um desfecho menos padronizado era mais justificada:

Ela era como uma criança sonâmbula andando por uma beirada de telhado a dez andares de altura. Ele estava com medo de gritar uma advertência, com medo de que ela acordasse e caísse.

Quando Richard decide encontrar Selena fora do ambiente da cafeteria, as coisas não saem como ele tinha planejado. Ele estava interessado em saciar os seus desejos e viver o momento, mas a sonhadora Selena mostrou que seus devaneios otimistas se restringiam à poesia. Em se tratando de começar um relacionamento, ela demonstrava um autocontrole e uma racionalidade incomuns para sua idade. Às investidas de Richard, ela resistia de maneira bem objetiva dizendo que não começaria um envolvimento com ele, pois sabia que ele se esgotaria dela e não estaria lá quando ela mais precisasse.

Richard encara essa sinceridade como um dos joguinhos de Selena e se sente ludibriado. Ele decide, então, provar que ela não significava muito para ele, avançando seu relacionamento com a bibliotecária Mary Jo. Desse ato impulsivo, nasce a nova fase da vida de Richard: um homem casado, pai de família, que precisa esquecer a poesia para se dedicar a atividades mais rentáveis.

É interessante como Atwood faz essa virada com um texto sutil, mas muito preciso. Assim como em Lixo Verdadeiro, ela destaca o poder de um momento aparentemente banal no destino de uma pessoa. A trajetória de Richard (assim como a de Ronette no outro conto) foi definida em um instante fortuito, que em uma análise simplória de causa e consequência, tinha Selena no centro de tudo.

A partir de então, os encontros entre a poeta misteriosa e Richard, embora sempre ao acaso, obedecem uma estranha periodicidade de décadas, sempre em anos terminados em zero, um “ano ovo branco incandescente”. Nesse meio tempo, ele acompanha o trabalho dela em revistas literárias, em um misto de admiração pela persistência de Selena na poesia e vergonha pela sua rápida submissão aos padrões da vida adulta.

A vida de Selena, que fugiu da alienação da burguesia, transcorreu com enormes sobressaltos. No primeiro desses encontros fortuitos, Selena pede abrigo à Richard, que decide receber a visitante. Sua esposa, porém, é bem menos receptiva, e a crise familiar deflagrada pela visita acaba levando a poeta a ir embora. Como ela previu tantos anos antes, no momento em que ela mais precisava, Richard não estaria lá para lhe dar apoio.

A solidão da vida artística é emblemática neste conto. O mundo das obrigações concretas parece não combinar com um dom que exige distanciamento, introspecção e excentricidade. Selena sabia viver essas instabilidades, com certa frugalidade material, mas a desilusão aos poucos toma conta da personagem. No último encontro entre ela e Richard, ela fala da poesia como algo morto e distante:

-Poesia – disse ela, com desdém. – Odeio poesia. É apenas isto. Isto é tudo o que existe. Esta cidade estúpida.

Richard encara a fala dela como um ato de “profanação”, “uma blasfêmia”, mas logo reflete que suas expectativas tinham pouco fundamento no mundo real e ele próprio havia descaradamente fracassado como poeta.

Quando Selena morre e enfim ganha o reconhecimento que não acompanhou sua obra em vida, Richard fica furioso com a superficialidade dos textos que lhe são dedicados. Ela, que em vida havia escrito sobre mitologia e sobre Ísis recolhendo pedaços de seu amor, parecia ter sempre caminhado na escuridão, numa “caverna onde ela escondia seu talento”. Agora, é a vez de Richard recolher os fragmentos da existência de Selena para falar da gênese de Ísis na Escuridão.

Ele parece se encontrar nesse papel de ligar os pontos soltos e contar uma história digna de Selena. Ele não foi a grande paixão de Selena (o Osíris de Ísis), mas será seu “arqueólogo”, quem a irá tirar das sombras:

É ele quem vai peneiras os fragmentos em meio aos escombros, em busca da forma do passado. É ele quem vai dizer que tem significado. Isso também é uma vocação, isso também pode ser um destino.  

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2 Comentários

  1. Em comparação com os dois primeiros contos, a mudança de tempo para passado e presente foi um pouco confusa, uma leitura que exigiu um pouquinho mais de atenção. No entanto, tive essa mesma percepção de como um momento descrito com tanta sutileza causou tamanha transformação. Admirável! 🙂

    • Que bom que você está gostando da leitura, Marcella! Realmente, a cada conto ficamos mais admiradas com o estilo de Margaret Atwood. Tomara que mais obras dela sejam relançadas em breve no Brasil! 🙂
      Continue acompanhando a leitura conosco! Estamos adorando receber seus comentários!
      Beijos!

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