A Era do Chumbo é um conto sobre permanência e morte, amor e degradação e sobre o mistério de uma doença que marcou uma geração. Margaret Atwood pode não ter, nos contos, a mesma habilidade para desenvolver personagens que Alice Munro, mas a mão forte de sua escrita sobre a passagem do tempo faz com que as histórias de Dicas da Imensidão sejam imperdíveis. Na próxima semana, vamos até a página 188, com o conto Peso.

Mariane Domingos e Tainara Machado

Muitas vezes, em Dicas da Imensidão, demoramos a nos situar dentro dos contos escritos por Margaret Atwood. Durante algumas páginas, a leitura flui, mas não fica claro para o leitor onde Atwood quer chegar com aquele texto. Com habilidade, porém, a escritora canadense desenvolve a conclusão de suas histórias, nos surpreendendo com a densidade das camadas de sentido que ela vai sobrepondo para unir passado e futuro numa mesma narrativa.

A Era do Chumbo segue esse modelo. A primeira cena relata uma descoberta arqueológica. O corpo de um homem que esteve enterrado por 150 anos sob uma camada de gelo foi descoberto praticamente intacto após escavações. Em um programa de tv, Jane, a personagem principal, acompanha a missão ao mesmo tempo em que resgata lembranças de um passado já remoto e de seu amigo Vicent.

Naquele momento, contemplando a televisão enquanto o losango de gelo gradualmente se derrete, e a silhueta do corpo do jovem marinheiro se torna mais clara e se define, Jane se lembra de Vincent, aos 16 anos e com mais cabelo na época, arqueando uma sobrancelha, levantando o lábio numa expressão de arremedo de zombaria, dizendo: “Franklin, meu caro, não estou nem aí”.

A relação entre Jane e Vicent foi algo sinuosa, uma amizade que acumulava também traços mais parecidos com amor. No auge da ingenuidade da adolescência e em meio a uma Toronto efervescente, que se abria em promessas, os dois imaginavam um mundo em que não havia consequências, nem cobranças, nem limites.  

– Sem cinto, sem alfinete, sem toalhas e sem atrito.

Isso era de um anúncio de tampões, mas também era o lema deles. Era o que ambos queriam: liberdade do mundo de suas mães, do mundo das precauções, do mundo de fardos e destino e das pesadas repressões femininas sobre a carne. Eles queriam uma vida sem consequências. Até recentemente tinham conseguido.

O encontro de contas deles com as responsabilidades veio na forma de uma tragédia coletiva. John Torrington, o membro da expedição que morreu durante a viagem e foi enterrado sob o gelo, morreu envenenado, assim como o restante da tripulação, por um mistério só resolvido muitos  anos depois: a comida enlatada, uma novidade contra a ameaça do escorbuto nas navegações, fora contaminada pela presença de chumbo nas soldas da lata.

Vincent, o amigo de Jane, morreu também de uma doença desconhecida e devastadora. Em seu conto, Atwood não chega sequer a nomeá-la, mas os traços da epidemia de AIDS nos anos 80 são inconfundíveis: de repente, as pessoas em seu entorno foram morrendo de doenças aparentemente banais – uma infecção, uma pneumonia – que se tornaram fatais.

Estava internado para exames. Coisa nenhuma. Estava internado por causa do indizível, por causa do desconhecido.

Jane parece despencar para a vida cinza em que ela é obrigada a se encaixar, em uma cidade que também não lembra mais a sua. De um mundo de janelas e portas abertas, dos quais se podia “entrar para depois sair”, a sociedade evoluiu (e aqui talvez a palavra que expresse mais o sentimento de Atwood seja involuiu) para um estado em que a liberdade sexual passa a ser reprimida pelo desconhecido, há mercúrio no peixe e pesticida nas verduras. A reflexão subjacente parece ser que nos deixamos levar pelo desenvolvimento da indústria, da globalização, das consequências de escolhas que não fizemos, até um ponto em que nada mais tem a aura da liberdade prometida dos anos 70. A vida, como ela observa da janela, virou descartável.

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