Chegamos quase ao fim de Dicas da Imensidão, com o conto que dá nome ao livro de Margaret Atwood. Para falar da imensidão da vida, Atwood alterna perspectivas ao assumir diferentes pontos de vista de uma família disfuncional. Acima deles, paira a sombra do passado, representado pela figura do avô em um quadro. Com seus finais abertos, a autora mais uma vez nos permite entrever as várias possibilidades do destino. Na semana que vem, terminamos a leitura com Quarta-Feira Inútil.

Mariane Domingos e Tainara Machado

Dicas da imensidão é provavelmente o conto mais sofisticado, em termos estruturais, desta coletânea. Atwood faz uso de um narrador onisciente que alterna suas perspectivas para construir perfis breves, mas profundos, dos membros de uma família nada convencional.

Leva um tempo até o leitor entender as tensões que marcam as relações entre os personagens. São quatro irmãos – um homem, Roland, e três mulheres, Portia, Prue e Pamela – e o marido de uma delas, George. Portia é casada com George, que tem um caso com Prue, deseja Pamela e é detestado por Roland.

George é o típico anti-herói: mau caráter, construiu toda sua vida pessoal e profissional sobre mentiras e trapaças. Sua principal habilidade é a sedução: ele mente como quem respira. Emigrou do Leste Europeu, ainda no período da guerra, e conheceu primeiro Prue, que o apresentou à família. Apesar de a irmã mais ousada ter sido seu contato inicial com o clã, foi Portia quem ele escolheu para fincar raízes. O perfil omisso e apaziguador de Portia era tudo que ele precisava para cumprir a convenção social do casamento sem, para isso, ter de abdicar das suas aventuras:

George é igualzinho. Ele olha bem nos olhos dela e mente com tanta ternura, com sentimento tão sincero, com tanta tristeza implícita diante da falta de credulidade dela nele que ela não pode questioná-lo. Questioná-lo a tornaria cínica e dura. Ela prefere ser beijada; ela prefere ser querida. Ela prefere acreditar.  

Portia sabe do caso do marido com a irmã, mas prefere não mexer nesse vespeiro. A relação de Prue e George é pautada pelo desejo. Não há vínculos, nem cobranças de nenhuma das partes. Embora Prue se orgulhe de seus envolvimentos descartáveis, no fundo ela se ressente por George não se importar com isso. Ele é tão substituível para ela quanto ela para ele.

Pamela é a irmã introspectiva, que, até então, nunca havia cedido às investidas de George. E isso o incomoda, porque ele está acostumado a vencer. Seu jeito direto e indiferente desafia as habilidades sedutoras do cunhado:

Liberdade não é ter uma porção de homens, não se você acha que tem de ter. Pamela faz o que quer, nada mais nada menos do que isso.

Por fim, temos Roland, que nutre, silenciosamente, um ódio pelo cunhado e pela sordidez que ele representa. A maneira desrespeitosa com que George e Prue tratam sua irmã preferida, Portia, e a omissão dela diante deles, o enchem de ódio. Os encontros na propriedade da família, o Pavilhão Wacousta, são um martírio para Roland, porque ali a convivência é inevitável. George o esmaga com sua presença espaçosa. Tê-lo naquele recanto familiar é lembrar algo que lhe escapa quando não estão juntos: George é parte da família, já se apossou da irmã e está pronto para tomar também os bens materiais.    

O cenário dessa narrativa, o Pavilhão Wacousta, é quase um personagem, pois abriga as sombras do passado, as tensões do presente e o futuro incerto. A propriedade é como uma panela de pressão, pronta para explodir:

Era só aqui que os territórios deles se sobrepunham. Pavilhão Wacousta, que parece tão pacífico, é para Roland o repositório das guerras de família.

O Pavilhão representa as guerras de família porque é ele que carrega o peso da tradição. Construído pelo bisavô, o lugar guarda a origem dos nomes, dos costumes e até mesmo dos temores mais recônditos dos personagens. O bisavô, com seu retrato pendurado no banheiro, observa e julga a todos. Portia, por exemplo, o olha de esguelha e pensa:

Seu bisavô a observa no espelho, desaprovando-a como sempre desaprovou, embora estivesse morto muito antes dela nascer.

A ambientação é particularmente importante neste conto. Se para Roland o lugar representa um peso, para George é um “monastério, seu terreno sagrado”. A versão do oprimido e do opressor, porque há sempre mais de um ponto de vista para uma mesma história.

Para deixar essa ambiguidade que preenche todo o conto ainda mais evidente, Atwood prefere não amarrar as pontas do final de Dicas da Imensidão. As pistas estão todas lá. George e Pamela se encaminharam para o lago. Portia observa os vestígios da presença do marido na cadeira de lona. Ronald finalmente dá sinais de que pode sair da letargia que marca suas reações sobre a relação de George com suas irmãs.

Nas últimas páginas, todos parecem caminhar para um desastre coletivo, para o momento em que finalmente aquela estabilidade construída na base de concessões, silêncios e mentiras vai ruir. Para resumir essa situação, Atwood recorre à uma poderosa metáfora natureza, que nos deixa pensando sobre a imensidão das escolhas.

Olha para a costa, para a linha d’água, onde o lago acaba. Não está mais na horizontal, parece inclinada, como se tivesse havido um deslizamento na base; como se as árvores, os afloramentos de granito, o Pavilhão  Wacousta, a península, todo o continente escorregasse gradualmente para baixo e submergisse.

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