Ela sobe ao palco. É magra, jovem, de vestido com miúdas estampas animais e cabelo curto. Sua figura não nos prepara e nem antecipa a potência do discurso que vem a seguir. A poeta pernambucana Adelaide Ivánova participou da série Fruto Estranho, que convidou autores a fazer intervenções  e performances antes de seis mesas da programação do Auditório  da Matriz, uma das novidades, da Flip  (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2017. Seu texto começou assim:

O problema não é que as pessoas lembrem por meio de fotos, mas que só se lembrem das fotos. Lembrar, cada vez mais, não é recordar a história, e sim ser capaz de evocar uma imagem.

Na foto preto e branco, o corpo de Angela Diniz está de bruços, descalço, de blusa e meia calça, sem a parte de baixo da roupa. Sangue na altura da cabeça. Angela Diniz foi assassinada em 1976 pelo namorado, com três tiros no  rosto e um na nuca.

A foto do corpo de Angela está online.

Ivánova prosseguiu em voz firme, por pouco mais de dez minutos, a relatar minuciosamente feminicídios que ocorreram há poucos ou muito anos, durante o período democrático ou na ditadura, casos célebres e mortes esquecidas pela imprensa, sempre nos lembrando que as fotos desses corpos estão online.

O desconforto e o nó do estômago faziam com que os presentes se mexessem nas cadeiras, mas ninguém conseguiu tirar os olhos daquela mulher que, na Igreja da Matriz, falava de sangue, estupro e morte, de violência e da curiosidade mórbida que leva essas imagens a perdurarem online. Ivánova encerrou sua catártica participação com duas perguntas que ficaram ecoando na minha cabeça e que, para mim, são a essência do que foi essa edição da Flip:

De que adiantaria meu silêncio?

De quem estaria meu silêncio a serviço?

É relativamente fácil se encastelar e viver alienado dos grandes debates que se colocam no plano nacional. Como disse Pilar del Río, esposa do prêmio Nobel José Saramago, todos nós temos contas para pagar, filhos para buscar na escola, lista de supermercado a ser resolvida. É fácil naufragar no cotidiano de problemas banais e esquecer que questões importantes estão em jogo.

A sul-africana radicada em Londres Deborah Levy, que teve o pai preso durante a luta política no país contra o apartheid, comentou sobre o peso dos acontecimentos, do conhecimento que temos de alguns fatos e eventos.

“O conhecimento nos custa. Algumas vezes, gostaríamos de “dessaber” alguns acontecimentos. Ficar em uma espécie de ignorância apaixonada”.

A alienação é uma resposta frequente da sociedade a momentos sociais conturbados. No entanto, no cenário político global atual, essa não deveria ser uma opção, como ponderou William Finnegan, escritor americano que dividiu a mesa com a autora, ao afirmar que o momento político nos Estados Unidos desde a eleição de Donald Trump não nos dá o direito de sermos ignorantes.

A necessidade de não nos calarmos quando temos voz foi assunto em quase todos os debates. Por isso, a pergunta que Adelaide Ivánova fez a todos os presentes ali na Igreja da Matriz é tão importante. De quem o seu silêncio está a serviço quando você silencia diante da corrupção, do preconceito, do machismo?

No confinamento, os livros são os nossos amigos. A escrita é o nosso desabafo. A palavra tem um poder muito forte.

Muito já se falou sobre os acertos e erros da curadoria de Joselia Aguiar, e por isso vou deixar essa discussão de lado (para quem tiver interessado, é possível encontrar boas análises aqui e aqui). O que me parece incontestável é que essa Flip fez questão de renegar o silêncio e ampliar os lugares de fala. A omissão deixou de ser uma possibilidade.A autoridade do discurso não está mais apenas no palco, em ambientes fechados, predominantemente masculinos.

Que o diga Diva Guimarães. O vídeo em que ela toma a palavra durante o debate entre o ator Lázaro Ramos e a jornalista Joana Gorjão Henriques viralizou na internet. A professora, negra, descendente de escravos, emocionou a todos ao falar de preconceito e homenagear sua mãe, uma lavadeira que fez de tudo para que a filha pudesse estudar.

Se o discurso se fragmentou com as redes sociais, Joselia Aguiar mostrou um olhar atento para a importância da diversidade e da inclusão no debate. Que venha 2018!

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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