[Nossa Senhora do Nilo] Semana #3

Na última leitura, mergulhamos na rotina do liceu Nossa Senhora do Nilo! Nas sutilezas das histórias cotidianas, Scholastique Mukasonga faz um preciso retrato do povo ruandês. Para a próxima semana, avançamos até a página 104.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

A educação é uma ferramenta poderosa nas mãos do colonizador – o dia a dia no liceu Nossa Senhora do Nilo não nos deixa mentir:

O sinal tocou outra vez. As aulas iam começar. Francês, matemática, religião, higiene, história-e-geografia, educação física, esporte, inglês, kinyarwanda, costura, francês, culinária, história-e-geografia, física, higiene, matemática, religião, inglês, costura, francês, religião, francês…

Um aspecto chama a atenção nesse trecho: Mukasonga se utiliza do recurso linguístico da repetição para estabelecer um ritmo, especialmente no final, em que fica clara a predominância das aulas de francês e religião na grade curricular das alunas. Enquanto o idioma local – o kinyarwanda – tem um espaço tímido na programação, o francês se impõe como a língua a ser aprendida e a religião, como assunto a ser priorizado. Quando pensamos na história de colonização do nosso país e dos nossos vizinhos na América, vemos que as coisas não foram tão diferentes por aqui, não é?

Outro ponto curioso dessa parte da narrativa é a visão da irmã Lydwine, uma das poucas ruandesas do corpo docente, sobre as disciplinas história e geografia:

… segundo ela, a história se referia à Europa, a geografia, à África.

A justificativa era que a falta de registros escritos dos povos africanos, que não tinham desenvolvido essa forma de comunicação, apagava sua trajetória. Em outras palavras, a história de Ruanda começou quando os europeus começaram a escrevê-la. Uma visão que desconsidera totalmente um forte traço da cultura africana, perceptível na literatura de Mukasonga e de outros autores como Mia Couto e Chimamanda Ngozi Adichie: a história oral. Mais uma vez, notamos uma realidade não muito distante de nós. Basta pensarmos nos povos indígenas e em quanto espaço a história do Brasil antes da colonização portuguesa ocupa em nossos livros didáticos – praticamente nenhum.

A história, a geografia e o idioma não estavam sozinhos na missão colonizadora proposta pelo liceu. A religião se impunha de maneira ainda mais explícita – desde o nome do colégio até discursos como este do padre Herménégilde:

Ele demonstrava, por meio de provérbios, que os ruandeses sempre tinham adorado um Deus único que se chamava Imana, e que parecia ser irmão gêmeo de Javé, dos Hebreus da Bíblia. Os antigos ruandeses eram cristãos sem saberem e estavam só aguardando, impacientes, a chegada dos missionários para batizá-los.

Assim como na imagem de Nossa Senhora do Nilo com a pele negra, temos aqui mais um exemplo das flexibilizações a que a Igreja Católica estava disposta, para criar identificação e ganhar força na luta contra a cultura local. Essa batalha, muito mais do que a física, é a maior ameaça a qualquer projeto de colonização ou dominação, afinal crenças e comportamentos são intangíveis e não morrem com tiros ou golpes de espada.

Bons exemplos são duas histórias que encontramos no último capítulo lido: as comidas locais escondidas nas malas no retorno das férias e o encontro de duas alunas com um feiticeiro.

A dificuldade de se adaptar à comida dos europeus, servida no liceu, é apenas um sinal das várias resistências do povo ruandês à aculturação a que eram submetidos. Mukasonga mostra, por meio dessa anedota leve e até divertida, que os costumes, a despeito de toda vigilância e proibições, acabam por encontrar uma saída para sobreviver.

O mesmo acontece na história de Veronica e Immaculée. As dezenas de aulas de religião por semana não as impedem de recorrer à feitiçaria para resolver um imbroglio amoroso.

O imponente Nossa Senhora do Nilo era como uma redoma, no alto da montanha, isolada por estradas mal acabadas e protegido por infindáveis regras. Mas, no final do dia, a rotina mostra que o liceu não era assim tão impenetrável. A história do povo ruandês podia até não estar escrita, como exigiam as noções de História da irmã Lydwine, mas isso não quer dizer que ela não existisse. Existia e resistia bravamente.

Conte para gente aqui nos comentários o que você pensa do tema colonização e de como Mukasonga o está abordando! Queremos saber também o que achou dos novos personagens que apareceram na narrativa, como o professor cabeludo. Será que ainda teremos mais histórias com ele?!

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2 Comentários

  1. No caso do professor cabeludo, é muito interessante o contraste entre a missão “civilizatória” do colégio, na verdade a serviço da elite no poder, e as profundas transformações que o Ocidente vinha experimentando na década de 60, como sabia a madre superiora (p.47): “Padre Herménegilde, o senhor sabe o que aconteceu na França não faz muito tempo: estudantes na rua, greves, manifestações, rebeliões, barricadas, a revolução.” Às alunas, tenta-se impor um duplo isolamento: em relação à cultura local mas também em relação aos aspectos mais dinâmicos da própria cultura ocidental.

    • Comentário perfeito, como sempre, Marcos! Ótimo ponto que você destacou! No liceu, tenta-se ter o controle completo sobre a educação das garotas, em um padrão que já era muito contestado no ocidente naquela época. Dessa forma, mais do que tudo, se transmitia o atraso! Obrigada por sua participação, estamos gostando muito de ler seus comentários por aqui!

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