[Nossa Senhora do Nilo] Semana #6

No capítulo que acabamos de ler de Nossa Senhora do Nilo, de Scholastique Mukasonga, Virginia, uma das garotas tutsis do liceu, reflete sobre a ausência de lugar para os tutsis no presente que se construía em Ruanda. Entre os sonhos de alguns brancos, que enxergavam neles uma linhagem real, e o domínio dos hutus, as notas do genocídio que viria a acontecer no país ganham mais ênfase a cada trecho dessa leitura. Está gostando? Conte para a gente nos comentários! Na próxima semana vamos avançar até a página 208.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Como se perdeu a conexão que nos ligava à terra e aos nossos ancestrais? Essa pergunta parece pairar sobre as páginas de O Umuzimu da Rainha, capítulo da semana na leitura compartilhada de Nossa Senhora do Nilo, de Scholastique Mukasonga.

A história, dessa vez, retoma um acontecimento de um capítulo anterior, e assim a autora começa a ligar as pontas dos fragmentos que compõem esse livro. Virgínia, uma das garotas tutsis do liceu, volta para casa nas férias,  com uma missão bem delineada: visitar um antigo feiticeiro da vila de sua tia paterna, que poderia ajudá-la a lidar com o espírito da rainha Candance, desenterrada pelo sr. de Fointenelle, um fazendeiro que recriou um templo egípcio acreditando estar resgatando as almas dos deuses.

Antes de chegar ao feiticeiro, contudo, Mukasonga procura nos ambientar aos costumes e rituais que marcam a vivência dos tutsis. De forma sempre secundária, a autora busca encaixar nas histórias referências sobre a discriminação e opressão que esse povo sofria em um país dominado por hutus. A cada menção, contudo, o cerco parece se fechar um pouco mais. Dessa vez, quem traz o tema à tona é a mãe de Virgínia, que começa o capítulo sonhando com a chegada da filha e sua procissão, como estudante de futuro, pelas casas da região.

Ela colocaria seu pano mais bonito e avaliaria, com um olhar crítico ou satisfeito, o respeito que cada vizinho demonstraria pela filha que, em breve, teria um diploma, concedido com tanta parcimônia, sobretudo para as moças, e ainda mais para uma tutsi. Um prestigioso diploma de humanidades. Até o chefe do comitê local do partido, que não parava de chatear e humilhar a única família tutsi da colina, se veria obrigado a recebê-la e a lhe dar as felicitações e estímulos cujas hipérboles não poderiam disfarçar sua obrigação.

A resignação com que a mãe aceita as humilhações que lhe são impostas descortina uma situação que parecia evoluir em banho maria: quando irreversível, já não haveria forças para resistira à dominação hutu.

Também é marcante o retrato da pobreza em que se vivia no campo. Por isso, há uma forte valorização do estudo e da proximidade de Virgínia com as madres e a Igreja. A única saída possível que se vislumbrava naquela situação era ceder ainda mais ao papel de colonizado, assumindo os compromissos, a fé e os hábitos de uma nação estrangeira, deixando para trás a cultura local. Era a escolha entre dormir a vida toda sobre a palha ou poder dividir um colchão em três crianças. Essa esperança, contudo, retroalimenta a situação de submissão perante os colonizadores, até que se chegasse ao ponto de total assimilação cultural. Nas escolas, os alunos são doutrinados a esquecer de seu passado, da simbologia e dos costumes locais.

Virgínia, no entanto, ainda procura resistir a esse movimento.Com a chegada dela à colina, Scholastique Mukasonga narra com delicadeza uma série de costumes locais,da colheita à preparação de cerveja de sorgo para levar a sua tia paterna. Na casa da parente, os rituais se seguem, com abraços demorados entre as duas, conversas protocolares, um sinal de respeito nessa relação bastante hierárquica.

Quando Virgínia anuncia que vai visitar uma amiga, contudo, essa hierarquia se inverte. A sobrinha que irá se formar no liceu, pensa a tia, tem ideias diferentes das suas, é preciso deixar que siga seu caminho, mesmo que isso a incomode. E assim as relações tão estabelecidas entre familiares e a terra começou a ser dissolvida.

O propósito de Virgínia, contudo, é mais nobre. Ela busca um feiticeiro local para aplacar o espírito da rainha, acordado por um branco. Mais uma vez, somos mergulhador em uma narrativa que traz fragmentos de um passado não muito distante em que a cultura tutsi, com seus reis, era respeitada, passando a mensagem de como isso se perdeu com a colonização.

Ao retornar ao liceu, Virgínia consegue seguir as instruções do feiticeiro, mas enxerga cada vez mais que seu povo já não tem mais lugar no presente.

– Eu fiz o que tinha de fazer. Mas também aprendi que os tutsis não são humanos: aqui nós somos inyenzis, baratas, serpentes, bichos nocivos; na terra dos brancos, somos os heróis de suas lendas.

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2 Comentários

  1. Mais uma vez o trecho foi resenhado com precisão, inteligência e sensibilidade. Parabéns! Entre as páginas 154-155 há um trecho belíssimo que gostaria de destacar: é quando o pretenso feiticeiro revela seu verdadeiro papel de guardião dos segredos dos reis e da memória do povo tutsi: “Par um umwiru, o esquecimento é a morte”. Assim como para os tutsis o esquecimento da sua cultura e das suas tradições seria o equivalente à morte. Obrigado!

    • Olá, Marcos, tudo bem? Adoramos os seus comentários sobre a leitura de Nossa Senhora do Nilo. Ficamos realmente muito felizes!
      De fato, o trecho sobre o feiticeiro permite ricas análises sobre a tentativa de esquecimento da história e da cultura do povo tutsi. Ótima análise! Continue lendo com a gente e comentando os trechos que te chamaram atenção, o que enrique a nossa leitura!
      Abraços,

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