Encerramos a leitura de Laços, de Domenico Starnone, e a última peça desse quebra-cabeça nos surpreendeu! Participou conosco desse Clube do Livro? Envie suas impressões sobre essa leitura no e-mail blogachadoselidos@gmail.com. Publicaremos as opiniões dos leitores aqui no blog na próxima semana!

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Ladrões? Vândalos? Vigaristas? Nada disso. No final de Laços, Starnone confirma o que vinha dizendo, desde o início, nas entrelinhas da narrativa: o caos desta família está nela mesma.

No terceiro e último livro do romance, o relato conduzido por Anna, a filha mais nova do casal, revela que ela e o irmão foram os responsáveis pela desordem no apartamento.

Depois de se encontrarem na casa, eles começam uma longa conversa sobre o passado, especificamente sobre o período em que o pai abandonou a família. Apesar da resistência de Sandro, Anna consegue inclui-lo na conversa e, aos poucos, as lembranças invadem a narrativa, trazendo mais uma perspectiva sobre fatos que já lemos anteriormente: o reencontro com o pai, a conversa reconciliadora sobre o modo de amarrar os sapatos e a primeira vez em que viram Lídia, a amante de Aldo.

Starnone consegue prender a atenção do leitor, mesmo com episódios repetidos, porque brinca com a subjetividade da memória. Cada indivíduo constrói suas próprias lembranças em cima do mesmo fato. Assim, descobrimos algumas novidades, como a imagem de Aldo chorando diante dos filhos quando da história dos cadarços, o encantamento de Anna quando viu Lídia com o pai e o pedido de aniversário do irmão que fez a mãe entrar em contato com Aldo. Da mesma forma que cada canto do apartamento esconde objetos que despertam diferentes memórias, cada indivíduo dessa família guarda lembranças que desencadeiam múltiplas versões para um mesmo passado.

Outro ponto forte dessa última parte do romance é a forma como Starnone relaciona os traumas do passado ao caráter dos irmãos no presente. Passamos mais da metade do livro especulando sobre os danos da traição e da separação em Aldo e Vanda, mas pouco pensamos sobre os efeitos do afastamento abrupto e da reaproximação mal resolvida sobre aquelas crianças. Nesta breve passagem, Anna resume o choque dessa realidade:

Lídia: até hoje o nome me parece uma mordida de fera. Quando mamãe o pronunciava, seu desespero se tornava o nosso, nos sentíamos os três dentro de um corpo só.

O apego material dos dois, a aversão de Anna à ideia de ter filhos, a dificuldade de Sandro para construir relações de afeto saudáveis são apenas algumas das cicatrizes que vemos nos irmãos.

O trecho em que Anna tenta entender seu pavor de construir uma família é um dos mais emblemáticos, porque notamos que a verdade que havia sido remoída durante décadas por Aldo e rejeitada (ou silenciada) por anos por Vanda, sempre esteve clara para a mais jovem de todos os envolvidos naquela história:

Queria meu pai só pra mim – desejava tirá-lo da mamãe e de você -, mas ele não era de nenhum de nós, ficava ali e no entanto estava ausente, tinha renunciado a mim, a você, à mamãe. E tinha agido bem, logo entendi. Ir embora, embora, embora. Nossa mãe lhe parecia a abnegação do prazer de viver, e nós também, também eu e você. E ele não estava errado, éramos isso mesmo, a negação. Seu erro de fato foi não ter conseguido nos rejeitar até o fim.

No apartamento, os dois redescobrem essas memória incômodas, procuram afastá-las, conversam sobre vender o imóvel. Quando começam a pensar nesse plano, sugerido por Anna de forma um tanto ardilosa, vemos de forma amarga o desprezo que ela guarda pelas memórias afetivas daquela convivência familiar, ao ser questionada pelo irmão sobre o que fariam com os objetos do apartamento caso decidissem levar seu plano a cabo.

Três quartos de tudo deveriam ser jogados fora. Mudamos várias vezes de casa, mamãe nunca se desfez de nada, e ainda nos forçou a conservar todo tipo de bugiganga. Pode servir – ela dizia -, pode servir pelo menos para vocês se lembrarem de quando eram pequenos. Lembrar? Mas quem é que quer se lembrar? Odeio meu quarto, me dá náusea só de entrar, contém toda a merda possível desde que nasci até quando finalmente fui embora daqui.

O desprezo pelas memórias, no entanto, não os impede de vasculhar a casa para esclarecer o passado. O cubo azul, que guarda fotos de Lidia nua, é o primeiro objeto a ganhar novo significado para os dois, quando o irmão mostra as imagens escondidas da amante de seu pai lá dentro. Enquanto Anna é dominada pela culpa por achar aquela mulher incrível, vemos naqueles objetos que escondiam segredos pela casa a materialidade de uma vida de ruínas. Se tudo parecia se encaixar no seu lugar, descobrimos nessa invasão que sempre houve um mal estar latente naquela casa, um caos que desgovernava os laços familiares. Ou como definiu brilhantemente Starnone:

Em toda casa há uma ordem aparente e uma desordem real.

A frase traz ecos de outra máxima familiar conhecidíssima. Na abertura de Anna Kariênina, Tolstoi escreveu:

Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira.

A infelicidade e a desordem são elementos que se completam, compartilhados por todos. É sempre possível manter a aura de felicidade, reunir objetos em uma casa que simulam uma ordem aparente, mas sob a superfície o que impera, na maioria das vezes, é o caos.

Gostou da surpresa que Starnone nos reservou para o final? Então não deixe de comentar essa leitura com a gente!

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