Reta final de Vozes de Tchernóbil! Para a próxima semana, terminamos a leitura do livro.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

O medo de ter sua história apagada do mapa e da memória é um dos temas de destaque nos depoimentos desse último trecho que lemos. Se voltarmos lá para o comecinho do livro, no capítulo em que Svetlana Aleksiévitch reúne algumas notícias sobre o desastre, logo no primeiro parágrafo, já percebemos que impedir esse esquecimento foi um dos principais estímulos da escritora:

Belarús… Para o mundo, somos uma terra incógnita – uma terra totalmente desconhecida. “Rússia Branca”: é mais ou menos assim que o nome do nosso país soa em inglês. Já Tchernóbil todos conhecem; no entanto, relacionam-no apenas à Ucrânia e à Rússia. Um dia ainda deveríamos contar a nossa história.

Ao longo do livro, identificamos uma série de motivos que levou os entrevistados a expor seus relatos a Aleksiévitch – tristeza, necessidade de compartilhar, indignação, sede de justiça, culpa e, finalmente, o medo de ser esquecido. E não se trata de um receio de ser apagado apenas como indivíduo, mas também como povo:

…talvez os bielorrussos desapareçam, assim como ocorreu em algum momento a outros povos: os citas, os cázares, os sármatas, os kimérios ou os astecas. (…)

Essa é minha história. Eu a contei.

Com uma população de 10 milhões de habitantes, a Bielorrússia se viu devastada pelo desastre nuclear. Tchernóbil marcou, irremediavelmente, esse povo. Documentos que se perderam em meio às arbitrariedades do governo, jovens que tiveram suas histórias apagadas e até casas e aldeias inteiras que foram literalmente enterradas:

Primeiro cavam um buraco enorme. De cinco metros. Chegam os bombeiros e com as mangueiras molham a casa toda, de cima até as fundações, para não levantar pó radiativo. As janelas, o telhado, a porta, molham tudo. Depois, um guindaste suspende a casa e deposita no buraco. Os livros, as bonecas, os potes de conservas, essas coisas caem e se espalham. Uma escavadeira recolhe tudo. Enterram tudo com areia e barro e comprimem. No lugar da aldeia fica um campo liso.

Releia esse depoimento, encarando-o como uma metáfora. A casa e as aldeias seriam a história do povo bielorrusso. No lugar dos bombeiros, o governo soviético e, em vez do pó radiativo, o pânico que precisava ser contido. Os livros, as bonecas e os potes enterrados e comprimidos seriam todas as vidas e sonhos que foram interrompidos pela catástrofe. Esse trecho é um ótimo exemplo de como Aleksiévitch sabe escolher os relatos e posicionar bem as palavras. Todas as cenas do livro são muito vivas e aproximam o leitor do sofrimento do entrevistado.

Outro ponto que vem chamando atenção há alguns capítulos, mas que se evidenciou ainda mais nessa última leitura foi a questão da contaminação dos alimentos. A região mais afetada pela castástrofe era predominantemente agrária, de populações rurais. O solo e os rebanhos deveriam ter sido inutilizados, mas não foi o que aconteceu. O Estado não queria espalhar o pânico e, menos ainda, abrir mão da produção agrícola que abastecia diversas regiões:

Quanto a Tchernóbil, de início a nossa reação foi a mesma. Que me importa? As autoridades que se virem, Tchernóbil é deles. E além do mais é longe. Não está nem no mapa, não nos interessa. Nós não precisamos dessa verdade. Mas quando apareceram nas garrafas de leite as etiquetas “Leite para crianças” e “Leite para adultos”, então dissemos a nós mesmos: aí tem coisa!

As pessoas se alternavam entre acreditar no discurso tranquilizador das autoridades e se preocupar com os indícios de que algo não ia bem. Água e solo contaminados representavam o inimigo em sua forma mais traiçoeira. Como lidar com um mal que pode viajar quilômetros “escondido” em recursos tão essenciais à sobrevivência humana? É a clara expressão de que o perigo pode estar em todo lugar.

O governo tinha sua propaganda enganosa e apaziguadora, mas havia sinais indeléveis, como as marcações nas garrafas de leite, que deveriam estimular um questionamento mais efetivo. Ainda assim a crença cega de que nada ruim aconteceria sem que o Estado informasse à população sobrepujava o bom senso. Uma das entrevistadas reflete sobre a origem desse comportamento e chega à conclusão de que a falta de liberdade não era apenas uma condição imposta por externalidades. Ela era uma marca do homem soviético:

E a demonstração do Primeiro de Maio? Ninguém nos obrigava a ir; a mim, por exemplo, ninguém me obrigou. Tínhamos escolha, mas não a usamos. (…)

Hoje eu penso… Venho buscando o ponto de ruptura. Onde se rompeu? Mas a ruptura está no início de tudo. É a nossa falta de liberdade. O ápice do livre pensamento é: “Posso comer rabanetes ou não?”. A falta de liberdade está dentro de nós.

E o que se segue a essa combinação de perigo à espreita e falta de liberdade (interior ou exterior) é o medo. Um dos sofrimentos que mais desperta empatia na leitura de Vozes de Tchernóbil é esse terror constante em relação à vida. E não é um receio da morte, mas sim um pavor de viver – tem-se medo da vida antes mesmo que ela comece.

Tchernóbil não é a história de uma só geração. Pessoas que nem haviam nascido quando a explosão ocorreu herdaram essa perturbação que oprime qualquer chance de uma existência plena. Se quem viveu o fato não conseguiu assimilar a catástrofe, imagine quem experimentou apenas suas consequências? No depoimento de uma criança, essa inquietação é expressa de uma maneira tocante:

Os médicos disseram que eu adoeci porque o meu pai trabalhava em Tchernóbil. Mas eu nasci depois disso.

E eu amo o papai.

É difícil imaginar uma ameaça à condição mais natural da existência humana, que é a continuidade da espécie, a nossa utopia da eternidade. Não à toa vivemos fugindo de assuntos como mudanças climáticas, escassez de recursos e catástrofes. A cada capítulo, Aleksiévitch nos mostra que não é nos esquivando dessas questões ou enterrando casas, aldeias, pessoas, que elas vão desaparecer. Vozes de Tchernóbil é justamente sobre não permitir sumir com a História.

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