Transcorrido um ano desde que António está no Lar da Feliz Idade, a dor da perda de Laura vai, aos poucos, se transformando em saudade e permitindo que nosso casmurro narrador volte a se sentir aquecido sob o sol. Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos na leitura de A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe – até a página 154, se você tem a edição da Biblioteca Azul, ou até a página 140, se você tem a edição da Cosac Naify.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

O cemitério, quase um personagem de A Máquina de Fazer Espanhóis, volta a aparecer no nono capítulo.  Dessa vez, ao contrário da outra visita descrita no livro, em que António não conseguiu nem chegar perto do lugar, o que lhe chama atenção é a mesmice das paisagens, das placas, das fotografias já apagadas: a igualdade de todos perante a morte.

tanta cultura e tanta fartura e ao pé da morte a igualdade frustrante e a mesma ciência. sabemos todos rigorosamente uma ignorância semelhante.

O lugar em que Laura está enterrada, como não poderia deixar de ser, também é exatamente igual aos outros, sem nada que a diferenciasse da última morada dos demais naquele cemitério. Para António, aquilo não deixa de ser um choque, mais uma constatação da perda da esposa, que sempre havia se diferenciado dos demais e se fazia notar ao entrar em uma sala, pela força de sua beleza interior e de seus gestos.

uma injustiça talvez para com o que fora em vida, e por isso não seria de espantar que o seu túmulo tivesse um aparato todo outro, a explicar às pessoas a diferença entre os mortos. mas era saudade minha. só uma saudade minha. qualquer outro visitante do cemitério sentiria o mesmo se porventura se desse ao lirismo habitual dos meus devaneios.

Esse reconhecimento, a constatação de que nossa dor não é pior nem melhor do que a dos outros, mas apenas própria, é uma parte indissociável do luto. Valter Hugo Mãe transforma em poesia as várias passagens da dor da perda de alguém. Um ano depois de ter chegado ao Lar da Feliz Idade, António reconhece estar chegando ao próximo estágio, no qual a dor ainda é profunda, mas não tão totalitária quanto nos primeiros dias. Ao não preencher mais todos os minutos, há espaço para que se comece a sentir a saudades da qual Américo, o enfermeiro, tinha lhe falado.

aquela saudade benigna que já não quer magoar mas celebrar o passado. entre o turbilhão das dificuldades acabei por resumir a vida em saldo positivo.

A reconciliação com seu destino, porém, não exime António de um aprendizado dolorido que só a passagem do tempo pode lhe dar. A reflexão que Valter Hugo Mãe faz sobre o que significa “viver o tempo de outro modo”, no luto, é uma das passagens mais delicadas e emocionais da leitura até aqui.

perdemos alguém, e temos de superar o primeiro inverno a sós, e a primeira primavera e depois o primeiro verão, e o primeiro outono. e dentro disso, é preciso que superemos os nossos aniversários, tudo quanto dá direito a parabéns a você, as datas da relação, o natal, a mudança dos anos, até a época dos morangos, o magusto, as chuvas de molha tolos, o primeiro passo de um neto, o regresso de um satélite à terra, a queda de mais um avião, as notícias sobre o brasil, enfim, tudo.

Em seu processo de recuperação da perda, António toma uma atitude que sinaliza sua necessidade de reconciliação com a vida. Ele escreve a carta que dona Marta esperava desde que entrou no lar. Se passando pelo marido dela, António expressa em palavras tudo que a colega queria ouvir – uma declaração de amor e de saudade. É uma forma de se redimir pela atitude violenta que teve com dona Marta e também de extravasar tudo que sente por Laura e que não encontra mais serventia depois da morte da companheira.

Quando a carta chega, todos ficam surpresos e até recorrem ao médico para verificar se seria mesmo adequado que D. Marta passasse por aquele choque. Logo que lê a mensagem, ela já começa a justificar o marido, dizendo que ele havia demorado todo esse tempo porque estava ocupado arrumando a bagunça que ela havia deixado em casa. O doutor Bernardo diz que ela não devia mais se preocupar com o que havia deixado desorganizado para trás. Então, dona Marta responde-lhe de maneira direta, esclarecendo de uma vez por todas o que aquela carta representava para ela:

eu tenho que pensar na minha casa e como deve estar bonita como sempre esteve, porque se pensar no que é estar aqui ponho o corpo no chão e digo-lhe para morrer.

A esperança que dona Marta cultivou todo esse tempo foi a forma que ela encontrou para sobreviver aos dias no asilo. Quando António e seus colegas conversam sobre o episódio, terminam em uma discussão sobre o que significa acreditar. Assim como dona Marta tinha fé de que a carta chegaria, sem se importar com as várias vezes em que o sonho não se concretizou, Anísio Franco tinha uma crença inabalável em seus santos. O senhor Pereira, então, conclui:

…acreditar é uma coisa íntima e que não se explica, apenas se sente.

O Silva da Europa discorda e acha que acreditar tem mais a ver com se iludir, com ter “uma qualquer saudade de nós mesmos”, dos tempos que passaram e não voltam. Ao pensar nisso, António recorda-se de sua juventude e descobre que, na verdade, há muito tempo ele vinha nessa luta diária pela sobrevivência, mesmo sem perceber:

eis a emissão certa, a propaganda que não podíamos dispensar, sobreviver, segurarmo-nos, e aos nossos, e abrir caminho até morte dentro. essa é que era a essência possível da felicidade, aguentar enquanto desse.

A única diferença é que agora não havia mais a quem se segurar, senão ele mesmo. E isso tornava o fardo da sobrevivência muito mais pesado.

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