[Enclausurado] Semana #2

Ao longo dos dois primeiros capítulos de Enclausurado, de Ian McEwan, nos acostumamos ao espaço exíguo em que vive o narrador, conhecemos melhor sua mãe e, aos poucos, vamos descobrindo qual é o plano tenebroso que ela e Claude arquitetam. O narrador pode até ser um feto, mas não perde a ironia e o humor ácido que marcam a obra do autor inglês! Animados para os próximos capítulos? Para sexta-feira que vem, vamos até a página 49. Acompanhe com a gente!

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher.

Como já escrevemos em outro post, a primeira frase de Enclausurado é tão marcante quanto outros inícios clássicos, como a abertura de A Metamorfose, de Franz Kafka. A chave aqui, assim como em Kafka, é dar um verniz de realidade a uma impossibilidade física, algo que discutimos no primeiro post deste Clube do Livro.

De partida, Ian McEwan nos situa dentro do útero de Trudy, um espaço apertado em que mal se pode “mexer um dedo”. Aceitar esse ponto de vista, porém, não significa abdicar da realidade. Todas as situações imaginárias são muito bem amarradas – cada devaneio tem uma explicação que habita o plausível.

Um bom exemplo é quando o feto, extremamente consciencioso do ambiente à sua volta, precisa cientificamente o momento em que surgiu seu primeiro pensamento. A descrição é tão racional, que até mesmo a perspectiva de tempo – sua breve existência lhe faz crer que algumas semanas correspondem a muito tempo – revela o quanto McEwan se colocou no lugar desse personagem tão peculiar para criar um relato verossímil:

Faz muito tempo, muitas semanas atrás, meu circuito neural se fechou e se transformou em minha espinha, e meus muitos milhões de jovens neurônios, tão ativos quanto bichos de seda, fiaram e teceram, a partir de seus axônios em forma de cauda, o lindo tecido dourado da minha primeira ideia, uma noção tão simples que agora em parte me escapa.

Essa tomada de consciência nos guia por descrições detalhadas de sons e sensações que o feto narrador percebe dentro do útero. Embora viva de conceitos abstratos, ele tem gostos refinados – aprecia muito as duas taças de vinho a que sua mãe se permite em jantares a luz de velas – e é capaz de metáforas como a de um filatelista que completa um álbum, à medida que junta as peças do plano que está sendo arquitetado por sua mãe e seu amante.

Por enquanto, sabemos pouco desse projeto. A mãe, Trudy, separou-se de seu pai e tomou posse de sua casa, uma mansão decadente em estilo georgiano que, ele descobriu, vale a fortuna de pouco mais de 7 milhões de libras. O pai, um poeta mal sucedido, dono de uma editora de igual destino, tenta reconquistar Trudy lendo versos. No entanto, até o feto percebe que não há nenhuma chance de isso ocorrer.

Sempre que ela e eu o escutamos, sinto em seu coração de batimentos cada vez mais lentos um véu de enfado impedi-la de ver o que há de patético na cena – um homem grande e de grande coração lutando por uma causa sem esperança com uma arma tão fora de moda como um soneto.

A pouca idade do narrador não impede seus comentários afiados acerca das pessoas e do mundo em geral. Já nos primeiros capítulos, McEwan começa a explorar outro aspecto que abrilhanta a narrativa – a crítica social. Trudy tem o hábito de acompanhar programas de notícia no rádio e esse será mais um ponto de contato do narrador com o mundo exterior, que o aguarda. A trama, embora centrada no núcleo familiar do feto, também terá espaço para análises de problemas políticos, econômicos e sociais, sobretudo do Reino Unido, terra natal dos personagens:

Mas não me queixo da minha boa fortuna. Eu sabia desde o início, ao desembrulhar de seu tecido dourado meu presente de consciência, que poderia ter chegado a um lugar pior e em momento bem pior. (…) Herdarei condições modernas (higiene, férias, anestésicos, lâmpadas de leitura, laranjas no inverno) e habitarei um canto privilegiado do planeta – a Europa Ocidental, bem alimentada e livre de pragas. (…) herdarei um reino em nada unido governado por uma rainha idosa e reverenciada, onde um príncipe que é também um homem de negócios, famoso por suas boas ações, seus elixires (essência de couve-flor para purificar o sangue) e intromissões inconstitucionais, aguarda com impaciência a coroa. Esse será meu lar, e vai dar para o gasto.

No início desse trecho, quando o narrador fala da consciência como um presente, nota-se também uma ironia. O feto não parece considerar sua capacidade cognitiva uma dádiva, apesar de utilizá-la com uma habilidade incomum para os seus poucos dias de consciência. Tomar ciência do mundo que o espera fora do espaço exíguo que habita representou o fim do ideal, do perfeito:

O início da vida consciente foi o final da ilusão, a ilusão de não ser, e a erupção do real. O triunfo do realismo sobre a mágica, do é sobre o parece.

O narrador se vê em um dilema: de um lado o poder sedutor da consciência – a sensação de domínio do mundo, bem ao estilo iluminista “penso, logo existo” – e, por outro lado, seus efeitos nocivos – pensar é acabar com a ilusão. Essa ideia é anunciada logo na epígrafe do livro, que é um trecho de Hamlet, de Shakespeare:

Deus, eu poderia viver enclausurado dentro de uma noz e me consideraria um rei do espaço infinito – não fosse pelos meus sonhos ruins.

A consciência é um caminho sem volta. Resta descobrir: para onde esse caminho levará nosso perspicaz narrador? Hamlet, já sabemos, não teve muita sorte.

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3 Comentários

  1. Esses dois primeiros capítulos foram inquietantes (ponto pra McEwan!). Não sabia ao certo se gostava ou não da leitura . É inovador por o feto como narrador e tão cheio de idéias e opiniões, mas confesso que, ao contrário de Reparação, por exemplo, Enclausurado ainda não me pegou. Estou, de qualquer forma, curiosa para os próximos capítulos e com fé na genialidade de Ian McEwan!

    • Eu gosto muito de narradores com humor ácido, no estilo Brás Cubas, por isso já me diverti bem nesses dois capítulos, rs! Mas também acho que a trama ainda vai melhorar. Vamos acompanhando! 🙂

      • Eu também gostei bastante dos primeiros dois capítulos! A análise sobre conjuntura global que ele faz a partir dos áudios que a sua mãe escuta são muito divertidas! E é um livro muito diferente do que estamos habituadas a ver McEwan escrever!

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