Está cada vez mais difícil parar a leitura de Enclausurado! Nesse último trecho, o plano criminoso dos amantes Trudy e Claude começa a se concretizar e tivemos cenas de prender a respiração. Qual será o destino de John? Para a próxima semana, avançamos até a página 126.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

O narrador de Enclausurado é o grande trunfo dessa obra de Ian McEWan – disso já não resta dúvida. Nesses dois últimos capítulos, o feto assume brilhantemente sua ambígua posição de espectador e narrador-personagem. Ver o plano de Claude e Trudy tomando forma a partir da narrativa sarcástica do feto foi o ponto alto do romance até agora.

As referências a Hamlet ficam cada vez mais claras. As similaridades de enredo são óbvias. Na obra de Shakespeare, o filho do rei da Dinamarca, Hamlet, sabe pelo fantasma de seu pai que seu tio Cláudio envenenou o irmão com a ajuda da amante, Gertrudes (que também é sua mãe). Hamlet decide então se vingar.

Mas há outros aspectos, estes bem mais sutis, que remetem à obra shakesperiana. A sensação é de estar assistindo, ao lado do narrador, ora na coxia, ora na plateia, a uma peça de teatro. Os diálogos que parecem decorados, os movimentos ensaiados, os improvisos no script – a concretização do assassinato é uma verdadeira aula de encenação. E de escrita. McEwan imprime um ritmo impressionante à narrativa, com cenas em que o suspense é tão grande que sentimos o mesmo tipo de ansiedade do bebê na barriga de Trudy.

McEwan volta a explorar muito bem a ligação física da mãe e do feto, para dar ao leitor a plena noção do que se passa nos bastidores da cena, ou seja, no íntimo de Trudy. Em qualquer outro romance, teríamos frases comuns que falariam sobre a expressão do seu rosto, o coração acelerado ou os movimentos nervosos das mãos. Mas, em Enclausurado, temos trechos como este:

“Se você não se importar, dou um pulo aqui com Elodia na sexta-feira. Ela quer pegar a medida para as cortinas.”

Visualizo um celeiro de dois andares do alto do qual é atirado ao chão um saco de cem quilos de cereais. Depois outro, e um terceiro. Foram assim os baques no coração de minha mãe.

O feto sente o que a mãe sente, mas, ao mesmo tempo, tem seus próprios pensamentos. Dessa confusão de posições (narrador onisciente ou personagem da trama?) nascem os comentários sarcásticos que fazem com que a cena seja tragicômica:

Primeiro erro. Por que deixar o irmão desprezado trazer a bebida, em vez da esposa sensual? Agora vão precisar mantê-lo falando, na esperança de que mude de ideia.

Outro ponto interessante dessa parte da história é que, na condição de espectador-comentarista, o feto precisa se posicionar e “torcer” por um lado. Nesses últimos capítulos, ele parece ter se conformado com sua impotência diante da situação e já não se sensibiliza tanto com o destino reservado ao pai:

Impossível não ficar do lado dos perpetradores e de seus estratagemas, acenamos do cais quando o bote deles parte cheio de más intenções. Bon voyage! Não é fácil, trata-se de um feito matar alguém e escapar. O êxito está no “crime perfeito”.

Apesar de sua experiência limitada sobre o mundo real, o narrador sabe que não existe crime perfeito. No mesmo ritmo do pulsar do coração de Trudy, ele observa os pontos falhos do planejamento, as brechas deixadas pelos dois amantes, o momento em que o plano pode ruir.

A sua ausência das decisões práticas tomadas por Trudy e John, por exemplo, são uma falha que o feto não deixa passar despercebida.  Enquanto ouve seus pais conversarem sobre poesia e lembranças de tempos cada vez mais remotos, numa clara antessala para o clímax da ação neste capítulo, ele se dá conta de que John continua tão ingênuo como se afigurava nos primeiros capítulos:

Nesse sensata troca de palavras entre as parte, nenhuma providência é tomada com relação a mim. Qualquer outro homem suspeitaria caso sua ex-mulher não negociasse os pagamentos mensais devidos à mãe de seu filho. Qualquer outra mulher, se não estivesse planejando alguma coisa, certamente exigiria tais pagamentos.

O feto nota sua ausência nesta trama na qual está irremediavelmente entrelaçado. Das coxias – o útero de sua mãe – ele não consegue enxergar todo o palco, mas sabe que é parte indissociável desta encenação e, portanto, procura assumir algum protagonismo. Sua única arma, porém,  são eventuais chutes com o calcanhar contra a parede da barriga de Trudy. Seu “pedacinho de poder” é usado para tentar chamar atenção dos pais, mas tudo o que ele consegue é distanciamento.

“Ah”, minha mãe suspira. “Ele está chutando.”

“Então está na hora de eu ir”, murmura meu pai.

Sem que ninguém reconheça sua futura existência, o feto narrador não tem outra saída senão aliar-se a Trudy, a quem está umbilicalmente ligado. Por isso, acompanha atentamente, e até com certa admiração, o teatro que sua mãe encena, no qual ela propõe um brinde ao amor que um dia existiu, e enfim convence John a engolir o líquido viscoso, envenenado.

O pai caminha para a saída e coloca a nós e ao feto de volta na plateia, nos fazendo a mesma pergunta, como qualquer espectador: o que terá sido de John?

 

 

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