Quão transformadora é a passagem do tempo em relação a coisas, pensamentos e, principalmente, sentimentos? Esse é o tema central de O Homem do Brejo, quarto conto de Dicas da Imensidão, de Margaret Atwood. Para a próxima semana, leremos Morte por Paisagem, que vai até a página 128.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

O pano de fundo da narrativa de O Homem do Brejo é uma expedição arqueológica para investigar os restos, quase intactos, de um homem de mais de dois mil anos. Embora simbólico, não é nesse episódio da trama em que o tempo se faz protagonista da história, mas sim nas décadas, aparentemente banais, que se passam na vida de Julie.

Julie é uma jovem que obedece a todos os estereótipos de uma aluna universitária liberal – está na fase de descobertas, sem muitos compromissos e pouco empática com tudo que é mais velho e, em sua opinião, ultrapassado. Ela se envolve com seu professor casado, que é mais um clichê da classe – na crise de meia-idade, busca aventuras com as jovens alunas, enquanto a mulher e os filhos o aguardam em casa e conservam sua boa imagem na sociedade.

O começo da paixão é avassaladora, ao menos para Julie. Connor é tudo que ela jamais havia conhecido em um homem. Ela o vê como um super-homem, cuja vida além do seu papel como amante é irrelevante. A maneira como ela vê a esposa de Connor é sintomática do seu desdém pela outra vida do professor:

Na época, Julie não achava que a esposa, os três filhos e o cachorro tivessem alguma coisa com ela e Connor. Era jovem demais para fazer essas ligações: a esposa era quase tão velha quanto sua mãe, e mulheres assim, na verdade, não tinham vida. (…) Ela não pensava nele como alguém que tivesse uma existência independente da sua: a mulher e os filhos eram apenas detalhes de subsistência tediosos, como escovar os dentes.

Essa perspectiva, no entanto, vai se transformando à medida que o tempo passa. A intimidade com Connor se intensifica, a paixão aumenta e já não é mais possível ignorar que ele tem um família, a qual não pretende abandonar. A esposa, antes invisível, começa a ganhar forma. Sua escapatória é imaginá-la com ainda mais desdém – uma velharia que vive para os filhos e para família, sem ambições, que não se compara ao viço de sua juventude. Mas se é assim, por que Connor não a abandona, então?

A maneira como Atwood nos coloca na cabeça da personagem prova a força da sua escrita. Os altos e baixos de uma relação entre amantes – a paixão, a cobrança e a decepção – não é grande novidade, mas a autora consegue captar e transmitir as emoções desses momentos com clareza e originalidade. Neste trecho, em que Julie encurrala Connor com um pedido de casamento surpresa, é notável a sutileza de Atwood ao mostrar que aquele rompante era apenas um sintoma de uma relação que se deteriorara há tempos, desde que Julie começara a assimilar a vida dupla do amante, em vez de ignorá-la:

Mas Connor não vai conseguir esquecer. Ela disse a coisa imperdoável, e de agora em diante é um caso perdido. Mas, de qualquer maneira, já era um caso perdido. A esposa não vista de Connor está na cama com eles, onde esteve desde o início. Agora se materializa, encorpa. As molas gemem com o peso dela.

A inversão da ordem cronológica dos fatos – o conto começa com o rompimento, em um improvável brejo – é o primeiro grande trunfo da narrativa. Essa disrupção estimula a curiosidade do leitor e nos vemos envolvidos na transformação, ou melhor, no amadurecimento, de Julie.

Outro diferencial do conto é que Atwood não interrompe a narrativa quando o caso entre os dois termina. Afinal, não se trata de uma história banal sobre uma paixão, mas sim de uma reflexão acerca do poder do tempo sobre experiências, memórias e comportamentos.

Na parte final de O Homem do Brejo, ouvimos Julie recontar sua história com Connor em diferentes fases da sua vida – logo após o rompimento, depois do primeiro divórcio, no segundo casamento. Em cada uma delas, um enfoque e um sentimento diferente, como se fossem “Julies” totalmente diferentes a recordar o episódio.

Nas entrelinhas, Atwood faz neste conto uma elaborada reconstrução do passado por meio de metáforas. Com a passagem do tempo, o relacionamento do casal e até mesmo o momento do rompimento são vistos sob ângulos diferentes, como se o passado pudesse ser ressignificado, reconstruído, revisado. Essa possibilidade está latente logo na primeira página do conto.

Julie rompeu com Connor no meio de um pantâno.

Silenciosamente, Julie revê isto: não exatamente no meio, não com água marrom turva, duvidosa, e folhas podres até os joelhos. Mais ou menos na beira do brejo; mais ou menos à distância de uma pedrada. Bem, numa pousada, para ser precisa. Ou nem sequer numa pousada. Em um quarto em um pub. O que estava disponível.

Para que o passado ganhe expressividade, lhe atribuímos detalhes que não necessariamente têm lastro na realidade. Atwood nos lembra que há um eterno contraste entre a vida como ela é e como a enxergamos ao longo de nossas experiências.

Essa revisão constante marca o amadurecimento da personagem, que passa a enxergar a si própria quando jovem com um grau maior de empatia por sua flagrante ingenuidade, enquanto os defeitos de Connor passam a ser mais visíveis:

Há outras coisas que ela também revê. Ela revê Connor. Ela revê a si própria.

O Homem do Pântano mostra, mais do que os contos que lemos até aqui, um elevado grau de domínio de Margaret Atwood sobre a estrutura do conto, ao intercalar camadas de passado e presente e colocar o leitor em estado de alerta.

É também uma história sobre a constante necessidade humana de revisitar o passado para elaborar identidades, como o trabalho dos arqueólogos, que buscam construir significados e hábitos a partir de fragmentos de épocas distantes. No caso de Julie, aquele romance há mais de trinta anos também representa um vislumbre de uma fase distante.

A história agora se tornou um relato a respeito de sua própria estupidez, ou, se quiserem, inocência, que brilha dessa distância com uma luz suave e abrandada. A história agora é como um artefato de uma civilização desaparecida, cujos  costumes se tornaram obscuros.

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