[Nossa Senhora do Nilo] Semana #9

O final de Nossa Senhora do Nilo escancara o ódio que ficou implícito ao longo de todo o romance. Terminamos a leitura com um nó na garganta, apreensivos principalmente porque sabemos o final dessa história, que em nada lembra a sutileza do texto de Scholastique Mukasonga. Agradecemos a companhia de todos por aqui e esperamos seus comentários sobre a leitura! Na próxima semana, publicaremos as impressões dos nossos leitores. Para participar é só escrever para blogachadoselidos@gmail.com ou deixar sua avaliação aqui embaixo!

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

A violência rondou toda narrativa de Nossa Senhora do Nilo. Ela estava ali, à espreita, em cada episódio relatado. As atitudes e falas cotidianas das garotas do liceu já anunciavam o desfecho trágico.

É interessante como Mukasonga retorna, no fim da narrativa, aos elementos que compuseram seu início. Os preparativos para a instalação da nova imagem da santa lembram o primeiro capítulo, em que outra configuração social, com os tutsis no poder, presencia o mesmo espetáculo. A santa muda, os espectadores mudam, mas a sede pelo poder, impregnada na cena que se repete, é a mesma. É um ciclo, em que os dominantes se alteram, mas a necessidade de subjugação permanece.

Mas, ao contrário da antiga Madona do Rio, que é colocada embaixo de uma lona em uma casinha afastada, pelo temor de que sua destruição levasse a represálias por parte daquela que foi adorada por tanto tempo, o extermínio da etnia tutsi é um plano cada vez mais escancarado. Nos jogos de poder, a vida humana tem bem menos valor do que símbolos religiosos.

Gloriosa aprofunda sua “militância” (assim, ela designava seu racismo), convocando membros da Juventude Militar de Ruanda para intervir no liceu e aniquilar os poucos tutsis que estavam na cota. Com o apoio do padre Herménégilde, o plano de “des-tutsização” da escola fica cada vez mais claro. Mais uma vez, entendemos a complexidade da figura do liceu para representar o equilíbrio de forças na sociedade ruandense: enquanto o “povo majoritário” é apoiado pela Igreja Católica, os belgas se omitem e os franceses, ainda que desaprovem a situação, também decidem ficar à margem, sem intervir. Sem apoio e cada vez mais solitários, aos tutsis só resta a fuga e o abandono da própria nação.

É neste clima de tensão que acompanhamos as páginas finais dessa leitura. Veronica alerta Virginia que não há como continuar no colégio. A formatura, tão sonhada pela mãe de Virgínia, já não estava ao alcance. Era o diploma ou a vida. O plano de fuga de Veronica conta com a ajuda dos brancos, especialmente do sr. de Fontenaille, que acreditava que ela era a reencarnação de uma rainha tutsi.

Já Virginia decide ficar no liceu, em um otimismo que parecia loucura. Ela guardava consigo a certeza de que escaparia, um sentimento que só ganharia fôlego depois de um sonho em que ela era salva pela rainha que ajudou a acalmar com o encantamento do umwiru, o feiticeiro. Certo otimismo, mesmo nas situações mais difíceis, pode ser um importante escudo de proteção contra as injustiças do mundo.

Ao escolher se agarrar nas crenças tradicionais de Ruanda, Virginia conseguiria escapar do massacre no liceu, com a inesperada ajuda de Immaculée. Já o destino de Veronica foi trágico. Caçada por Gloriosa e encontrada pelos membros da militância ruandesa, ela seria abusada sexualmente de forma vil, em um dos trechos mais chocantes do livro.

Sem outra alternativa, Virginia buscaria transpor as fronteiras de um país que um dia foi seu, mas no qual não lhe era mais dado espaço. O golpe de estado de 1973 pode ter alterado a configuração de poder, mostrando a Gloriosa que sua força era efêmera, mas Virginia continuava no lado fraco, sob ameaça tanto quanto os gorilas das montanhas. Mas, neste caso, os brancos não estavam interessados em protegê-la.

A leitura de Nossa Senhora do Nilo nos fez refletir bastante sobre o conceito de banalidade do mal, de Hannah Arendt, mostrando como uma estrutura de poder erguida sobre o preconceito e o racismo podem levar a um Estado autoritário, na qual os cidadãos não são apenas coniventes com a truculência estatal, mas operam como agentes de coerção e repressão. Um alerta que, infelizmente, continua bastante atual.  

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2 Comentários

  1. A conclusão de vocês é perfeita: no desfecho Mukasonga dá uma aula acerca do funcionamento do poder e do caminho natural de uma política baseada na oposição identitária e no maniqueísmo. Discursos sobre pureza, autenticidade e destino histórico podem muitas vezes encobrir um projeto de extermínio, neste sentido a comparação que vocês fizeram com os nazistas no post anterior foi extremamente válida. Foi muito enriquecedor ler os comentários de vocês, agradeço muitíssimo e espero que eu possa desfrutar disso em outros livros. Obrigado 🙂

  2. No desfecho Mukasonga dá uma aula acerca do funcionamento do poder e do caminho natural de uma política baseada na oposição identitária e no maniqueísmo. Discursos sobre pureza, autenticidade e destino histórico podem muitas vezes encobrir um projeto de extermínio, neste sentido a comparação que vocês fizeram com os nazistas no post anterior foi extremamente válida. Foi muito enriquecedor ler os comentários de vocês, agradeço muitíssimo e espero que eu possa desfrutar disso em outros livros. Obrigado 🙂

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