O que vem depois do choque diante do caos material? Mais caos, agora sentimental? No trecho de Laços lido na última semana, Domenico Starnone comprova todo potencial de sua prosa ao costurar um retorno sofisticado, em termos narrativos, ao passado conturbado que abriu o romance. As cartas de Vanda estão de volta, décadas depois, e prometem reflexões valiosas. Para a próxima semana, vamos até a página 101.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Os objetos começam a ganhar vida em Laços. Depois do susto inicial pelo apartamento revirado, Aldo e Vanda têm que lidar com todas aquelas memórias ali expostas em formato de cacos e objetos espalhados. Aos poucos, o caos material vai se transformando em um caos sentimental.

Aldo logo percebe os perigos de deixar aquela bagunça à mostra. Ele teme que algum item perdido ou danificado seja um gatilho para alguma memória dolorosa de Vanda. Aldo não imaginava que ele seria a primeira vítima.

A maneira como Starnone explora essa oposição entre a concretude das coisas que guardam lembranças e o abstrato da memória sentimental é digna de nota. O escritor constrói metáforas expressivas nesse processo. Ele nos mostra que a maneira com que lidamos com os objetos que nos cercam – acumulando, descartando ou escondendo-os – diz muito sobre nós. Quando resgata a história do pesado cubo de metal que havia chamado a atenção da entregadora, Aldo observa:

Aparentemente, para satisfazer minha mulher, eu o empurrei bem para o fundo, de modo que quase não fosse visto por quem estava embaixo. Na verdade, queria que aos poucos ela se esquecesse dele. Vanda não sabia que bastava pressionar com força o centro de uma das suas faces para que ele se abrisse como um porta e, também ignorava, naturalmente, que eu havia comprado aquele objeto justo por essa característica: queria guardar meus segredos ali.

A partir das reflexões de Aldo, Starnone vai além no exercício filosófico: nós somos nossas lembranças? Quando o personagem encontra uma série de objetos que contavam um pouco da sua trajetória profissional, ele se questiona:

Pois é, recuperei ali algumas coisas que testemunhavam como eu empregara uma vida bastante longa. Eu era aquele material?

A memória é um tema caro aos escritores (já até falamos disso aqui). Starnone parece saber lidar muito bem com essa poderosa matéria-prima literária. Depois de um começo arrebatador em que a dor visceral de Vanda transborda das páginas, sem muitas dicas do que passou ou do que virá, o autor consegue, com muita habilidade, costurar a narrativa de volta ao passado.

O ponto de partida é o mesmo. Aldo encontra, debaixo de um fragmento de um vaso de flores, o pacote com as cartas que Vanda lhe escrevera quando ele a abandonou por uma mulher mais jovem. A releitura o faz lembrar da tristeza da esposa, mas também o leva a procurar dentro de si as respostas que ele nunca pôde lhe dar: por que tinha ido embora?

Seu distanciamento da situação, a surpresa com que ele encara a dor de Vanda, são desconfortáveis. Quando ele conta para a mulher que havia “ficado” com outra, relembra que não esperava uma reação tão violenta dela. Em sua própria felicidade de apaixonado, Aldo nunca conseguiu realmente sentir empatia pelo sofrimento da pessoa com quem havia dividido  responsabilidade, alegrias, teto e filhos por doze anos:

Brigamos a noite toda em voz baixa, e sua dor sem gritos, uma dor que lhe agigantava os olhos  e distorcia os traços, me aterrizou ainda mais do que se berrasse. Me aterrorizou, mas não me atingiu: seu tormento nunca entrou no meu peito como se fosse meu.

Aldo tentava se enganar com a ideia de que aquele era um romance passageiro, que serviria para “refundar” a relação com a esposa, que era um caso típico de um período em que a instituição do casamento deixou de ser reverenciada e passou a ser arcaica. Ele resiste a admitir que estava totalmente envolvido em sua relação com a jovem Lidia. Essa relutância, esse dubiedade, o colocam como um figura egoísta, capaz de enxergar apenas os próprios sentimentos.

Em sua análise daqueles anos conturbados, Aldo é honesto. Enquanto vemos nas cartas de Vanda um tom de consternação em relação ao seu destino e ao dos filhos, Aldo simplesmente reflete, quando questionado sobre como pretendia cuidar de Anna e Sandro: “não havia pensado nisso”. Seu distanciamento emocional se contrapõe ao mergulho de Vanda em sua dor.

Essa corda esticada, que passa a se distender cada vez mais em suas visitas periódicas aos filhos, o leva a tomar uma decisão súbita: levar Anna e Sandro para passar temporadas com ele em Roma nas férias.

Nossa aposta é de que essa experiência tende a ser dolorosa, por sua indiferença e por aprofundar o senso de abandono de Vanda. Também fica cada vez mais difícil compreender como a mágoa desses anos pôde ser escondida em meio aos móveis, para que os dois vivessem mais trinta anos de casados. Imagina o desfecho para esses dilemas? Conte para a gente aqui nos comentários.

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