Helena Morley começou a escrever Minha Vida de Menina (Companhia de Bolso, 325 páginas) com apenas 13 anos. Isso não significa que ela seja um prodígio da literatura: o livro nada mais é do que um diário adolescente sobre a vida na província. Ao mesmo tempo, é uma leitura saborosa sobre um momento histórico relevante: escrito entre 1893 e 1895, o diário de Morley, pseudônimo de Alice Caldeira Brant, retrata as relações sociais e econômicas em um Brasil afastado das grandes metrópoles e ainda muito marcado pela escravidão, abolida há menos de uma década.

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Morley, apesar da pouca idade, era uma observadora atenta do seu entorno. Filha de mãe brasileira e pais inglês, ela conta, de forma sucinta e bem-humorada, conservando a ingenuidade e o espírito rebelde da adolescência, a relação com os pais, os tios e a avó, a decadência da mineração, a pobreza da família, a vida na escola e os hábitos provincianos de Diamantina, em Minas Gerais, onde nasceu.

Muitas vezes, a autora se limita a relatar acontecimentos de forma direta, sem emitir opiniões ou julgamentos, apenas transpondo para o diário o cotidiano. Nesses fragmentos, algumas passagens despertam atenção:

Meu pai, precisando de algumas praças para o serviço que está fazendo no Bom Sucesso, pôs-se a indagar até saber que as Cunhas têm em casa dois negros que ainda foram do cativeiro e que elas costumam alugar para fora e dividir com eles o dinheiro, porque não estando alugados elas é que os sustentam. Meu pai e mamãe então se lembraram de passar na casa das Cunhas, na Rua do Bonfim, para contratar os negros. .Lá elas disseram que os negros já estavam alugados e no meio da conversa contaram que tinham dois irmãos chamados Geraldo e Anacleto que viviam em casa à toa, sem emprego. Mamãe, depois que elas disseram que os negros já estavam alugados, não prestou mais atenção à conversa das mulheres, deixou meu pai só  ficar escutando. Mas quando ela ouviu nos dois que estavam em casa desempregados, mamãe disse: “Por que as senhoras não nos cedem Geraldo e Anacleto?”. As mulheres ficaram espantadas e meu pai teve de explicar que mamãe estava distraída e pensou que eles também eram negros.

O fim da escravidão não significou liberdade econômica para os negros, que continuavam dependentes de seus “donos”, ainda que em um regime diferente. Agora, em vez de escravos, eram “alugados”, tratados ainda como propriedade privada dos brancos. O preconceito, obviamente, era uma marca dessas relações, uma herança que contaminaria gerações por vir.

Como qualquer diário, a passagem do tempo também fica evidente nesta leitura, e nos leva a algumas curiosidades, como o fato de que somente os homens portavam relógios, deixando as mulheres literalmente no escuro.

Outra força motriz da vida em sociedade no local é a religião, que controla o ritmo dos acontecimentos, com as festas, as missas, as rezas, as ladainhas. Muito católica no lado materno, a família de Morley reza quase o tempo todo, embora o pai, descendente de ingleses, se abstenha dessa convicção. Já o Estado está virtualmente ausente, como nota a própria Helena, quando da eleição de Prudente de Morais para a presidência. O pai comemora, mas ela vê o acontecimento com ceticismo.

Eu sempre digo a meu pai que não pode entrar na minha cabeça que tenha alguma influência para nós aqui  na Diamantina mudança de presidente. Meu pai diz que tem toda, que o governo é uma máquina bem organizada e que o presidente sendo bom e fazendo bom governo beneficia o Brasil inteiro e chega até aqui para nós. Eu lhe disse que só poderia acreditar nisso se o presidente mandasse canalizar a nossa água e consertar o nosso calçamento.

A autora, que começou a escrever por incentivo paterno e seguiu com o hábito por exigências escolares, além de achar “mais fácil escrever o que se passava em torno de mim e entre a nossa família, muito numerosa”, acaba desenvolvendo uma consciência crítica sobre seu entorno, refletindo ainda sobre questões atuais como o papel da mulher na sociedade.

Acabou convencida pelas netas a publicar o livro, ainda que não acreditasse que as memórias de uma menina em uma cidade do interior, “sem luz elétrica, água canalizada, telefone, nem mesmo padaria”, pudessem interessar a alguém, tantas décadas depois. O fato é que o diário de Morley não é só uma leitura agradável, com episódios que nos fazem rir e relembrar as rebeldias da adolescência, mas um retrato importante de um período de grandes mudanças para o país, com o fim da escravidão e o início da República.

Não à toa, a leitura passou a integrar a lista de livros obrigatórios para a Fuvest, processo de seleção para ingresso na Universidade de São Paulo. Ainda que o cotidiano ali relatado tenha mais de 100 anos, é um sopro de frescor e jovialidade em uma lista dominada por velhos conhecidos.

 

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
Tainara Machado

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