Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos, até a página 192 (se você tem a edição da foto).

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Os dois capítulos que acabamos de ler de A Besta Humana marcaram o início das investigações do assassinato do presidente do tribunal de Rouen, Grandmorin. Membro da alta burguesia, Grandmorin foi assassinado em uma viagem de trem de Paris para Le Havre pelo casal Roubaud, depois que o marido descobriu que a esposa, Séverine, teve um caso com seu protetor antes de se casar.

Émile Zola mantém o nível de tensão elevado. Roubaud reassumiu suas funções como subchefe da estação de Le Havre com pretensa calma, mas o tempo todo fica à espreita de qualquer notícia ou informação sobre o assassinato cometido na noite anterior.

Quando a notícia do crime enfim chega à Le Havre, os dois admitem que estavam no trem e que chegaram até a conversar com Grandmorin, mas apresentam supostos álibes entre os passageiros, como o casal que os acompanhou no vagão. Enquanto Roubaud conta sua história a todos da estação, a subserviência de Séverine se faz ainda mais presente do que no primeiro capítulo, quando ela foi brutalmente espancada pelo marido ao revelar, sem querer, seu segredo. Assustada, ela só faz confirmar tudo o que Roubaud diz, com expressões como “Sim, com certeza” e outras frases igualmente pouco assertivas. Embora cúmplice do crime, já estamos na torcida para que ela confesse o ocorrido e coloque o marido atrás das grades.

Neste trecho, também tem andamento o processo de investigação pelo juiz de instrução, dr. Denizet. Um mês depois do crime, as investigações quase não avançaram. Com a proximidade das eleições gerais na França e a crescente oposição ao Império, o crime ganhou destaque nos jornais, embora a posição social privilegiada do assassino fosse capaz de abafar certos pontos menos lisonjeiros de sua vida.

E o caso Grandmorin, naquele momento, dava continuidade às agitações com as versões mais extraordinárias circulando e os jornais imprimindo diariamente novas hipóteses, sempre ofensivas ao governo. Subentendia-se, por exemplo, que a vítima, frenquentadora das Tuileries, um ex-magistrado, comendador da Legião de Honra, dono de fortuna milionária, era dado às piores imoralidades. Além disso, não tendo o processo até então apresentado bom resultado, já se acusava de complacência a polícia e a magistratura, com ironias a respeito do assassino lendário que permanecia inencontrável. Como as críticas tinham boa dose de verdade, pareciam ainda mais difíceis de serem suportadas.

Subentende-se, neste trecho, que os jornais desconfiavam que o assassinato seria resultado de alguma vingança contra Grandmorin, que tinha preferência por mulheres muito jovens, e que a riqueza da vítima poderia ser suficiente para abafar o caso.

Dr. Denizet, porém, está impaciente e decide chamar novamente as testemunhas que já prestaram depoimento. Muitos pontos do crime lhe causam desconforto. Por um lado, ele suspeita do casal Roubaud, que teria até um motivo para ter assassinado Grandmorin. Com a abertura do testamento do falecido, fica-se sabendo que ele distribuiu quase metade de sua riqueza entre várias mulheres e deixou a casa de Croix-de-Maufras para Séverine. Ao mesmo tempo, também tem suspeitas sobre Cabuche, um quebrador de pedras bruto que vivia perto de Doinville e que havia jurado matar Grandmorin, a quem culpava pela morte de Louisette, uma menina a quem se afeiçoava e que havia sido mais uma das vítimas do presidente.

Interessados em tomar posse de Croix-de-Maufras, a filha de Grandmorin e o marido, sr. Lachesnaye, acusam o casal Roubaud, argumentando que o motivo do crime era o interesse na herança. Já a irmã da vítima, sra. Bonnehon, crê que o culpado é Cabuche. Ela conta que as ameaças do quebrador de pedras foram feitas em alto e bom som, depois que ele acusou o presidente de ter violentado e causado a morte de Louisette. Ela não considera o caso possível. Sua opinião é de que o irmão pode ter tentado, no máximo, beijar a menina, que inventou a história de estupro para Cabuche.

– “Resumindo, uma história bem desagradável, que nos causou muito incômodo. Felizmente a posição de meu irmão o deixava acima de qualquer suspeita”.

Zola reitera esse ponto diversas vezes. Seja por meio da apresentação dos personagens, seja pelo depoimento dos envolvidos, ele nos mostra que a posição social define o grau de liberdade do indíviduo e da condescendência da sociedade com suas atitudes.

Assim é que Séverine, filha de um empregado de Grandmorin, foi na juventude abusada por quem, supostamente, era seu protetor. Anos mais tarde, é acuada pelo próprio marido, embora tenha lhe garantido grande parte do status que ele tem hoje, como a vaga de subchefe na estação.

Ja a  sra. Bonnehon não devia explicações a ninguém. Viúva desde os trinta anos de um dono de fábrica que a deixou ainda mais rica, pôde desfrutar de companhias masculinas sem muito julgamento da sociedade.

(…) levou uma existência agradável, cheia, ao que diziam, de repentinas paixões, mas de forma tão correta e franca que sempre manteve situação arbitral na sociedade rouenensa.

O mesmo vale para o próprio Grandmorin. Como a irmã admite, ele era dado a algumas aventuras, mas nada que prejudicasse sua posição na sociedade.

A boa ou a má sorte na vida também depende do prestígio e dos bens materiais de cada indíviduo, como nos mostra o destino de vários personagens. O sr. Lachesnaye, marido da filha do presidente Grandmorin, por exemplo, é descrito como um homem pouco piedoso, seco e mesquinho. Sua ascensão na magistratura ocorreu basicamente pela ajuda do pai, o que causa certo rancor no juiz do caso. A tensão social é latente:

Já com o sr. de Lachesnaye, louro também e magro, foi apenas polido e até meio arrogante. Isso porque o homenzinho, conselheiro da corte desde os trinta e seis anos de idade, condecorado graças à influência do sogro e aos serviços que o pai, também magistrado, outrora havia prestado nas Comissões Mistas, representava a seu ver a magistratura de favor, a magistratura rica, os medíocres que se estabelecem tendo certeza da rápida ascensão, pelo parentesco ou pela fortuna.

Por outro lado, o quebrador de pedras Cabuche não tem muitas chances de reverter seu destino. Preso por uma briga de rua, ficou quatro anos atrás das grades e agora é acusado de um crime que, já sabemos, ele não cometeu. Mas isso pouco importa. É muito mais fácil culpar o homem que vive solitário numa cabana no meio da floresta, abandonado pelo pai, do que o subchefe de estação e sua esposa. Ele é, porém, o personagem que, até agora, transparece mais ingenuidade e senso de justiça, ainda que à sua própria maneira.

Como se não bastassem os infortúnios que sua posição social acarreta, Cabuche tem ainda outro aspecto que pode agravar sua situação. Jacques, o maquinista que testemunhou o assassinato, está cada vez mais convencido da culpa dos Roubaud, mas trava uma luta interna entre suas lembranças e a atração cada vez maior que sente por Séverine:

Desviando porém seus olhos do marido, encontrou os da mulher, que estampavam tão ardente súplica, um devotamento tão integral de toda a sua pessoa que ficou desconcertado. O antigo arrepio o percorreu: será que então a amava, como simplesmente se ama, sem o monstruoso desejo de destruição? E nesse momento, num singular reviramento do seu transtorno, pareceu-lhe que sua memória se obscurecia, ele deixava de reconhecer em Roubaud o assassino.

As batalhas internas com a própria consciência não são exclusividade de Jacques. Durante as investigações, Roubaud também se vê encurralado moralmente quando percebe que as mentiras que inventou sobre um outro culpado ganharam forma na figura de Cabuche. Não se tratava mais de mentiras jogadas ao vento. Um inocente poderia ser condenado à morte. Mais uma vez, Zola nos lembra da bestialidade que existe dentro do homem. Tal qual um animal que obedece seus instintos de sobrevivência e carece de consciência, Roubaud tomou o caminho que livrava sua pele:

Aflito, o subchefe travava uma surda luta interior. Venceu o instinto de preservação.

Ao final do capítulo, não resta dúvida de que o subchefe já está calculando friamente todos os passos que podem contribuir para forjar sua inocência. A conversa final com Jacques sugere que Roubaud percebeu a influência que Séverine exerce sobre a principal testemunha do crime e não irá hesitar em usar essa vantagem a seu favor. Resta saber até que ponto as bestas contidas nele e em Jacques (e quem sabe em Séverine também!) conseguirão obedecer à racionalidade desses planos. Já estamos de olho nas próximas páginas!

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